sábado, 9 de outubro de 2010

Crônicas Classificadas: 2) Um Veleiro in Alpha

A propósito do texto que escrevi a respeito de Fernando Cavallieri, lembrei-me de que ele, indiretamente, foi responsável por eu ter conhecido um camarada dos mais cultos com quem já tive o privilégio de prosear e que acabou se tornando um querido amigo, com quem já travei, via e-mail, papos que dariam um verdadeiro livro. Eu, em minha sagitariana bagunça, devo ter perdido a maioria deles, porém, Sérgio-Veleiro (o Veleiro Perdido) seguramente os têm guardados, com minha autorização pra os revelar após minha morte. Veleiro adora poesia, café, solidão, é arredio, agressivo por vezes em sua vocação pra falar a verdade, é um sujeito com quem briguei muito, a quem magoei e por quem fui magoado, isso tudo à distância, sendo ele um cearense de Fortaleza e eu, um cearense do Paraguai, digo, de Sampa. Mas, sobretudo, ele é um ser iluminado, poeta de versos sensíveis (muitos deles, musicados) e prosa açucarada (no sentido de se lamber os beiços, não de pueril), embora também afiada.

Vimo-nos duas ou três vezes ao longo desses cinco anos de amizade, todas elas justamente quando de sua mais recente viagem a São Paulo. Depois de haver-me confrontado com suas duas personalidades, a virtual e a real, cheguei a traduzi-lo em versos, que acabaram musicados por Affonso Moraes Alê Cueva. Ao final do texto posto a letra e a canção pra audição. Pois bem, dando prosseguimento a minhas Crônicas Classificadas, compartilho com vocês o primeiro texto (de muitos) que li de Veleiro. Após o haver lido, enviei-lhe um e-mail de agradecimento, e-mail este que foi o primeiro de uma infinidade. Eis o texto:


(sem título)

É preciso que se diga, é preciso que as palavras corram mundo para encontrar abrigo nos ouvidos que estão prontos para ouvir e que saibam ouvir e queiram ouvir. É preciso também que se deixe levar e que se escutem as canções deste CD (Fernando Cavallieri in Alpha) como quem passeia por um Brasil que ainda existe, um Brasil de gente de talento que sofre e que ri, e ri de tudo, sobretudo de si mesmo. E chora, porque o choro é nossa ligação com os sentidos, e se emociona, porque nosso sangue latino ferve e está quase sempre a um passo da ebulição.

É preciso estar atento e entender as dificuldades do show bizz e da indústria da música que reverberam pelo país seus acordes tortos de interesses escusos e compreender este trabalho como uma brincadeira muito séria, mas em sua essência um projeto brincante. Elaborado por um equilibrista que não tem coração de trapézio, como diz a primeira canção, mas abusa com galhardia da corda bamba e se entrega num salto mortal. E, como sempre acontece no circo da nossa ilusão, o salto é perfeito e é inevitável o aplauso, em alguns momentos, de pé. Compreende? De pé.

Referências há, é claro que há. Da bossa sempre nova do Samba de Uma Noite Só ao Samba do Bem, passando pela sonoridade de um cotidiano lúdico-mineiro ("joga a bola no vizinho, pula muro, pega a flor, abre a gaiola e deixa o sol sair...").  Passeando por outras faixas do CD é possível encontrar canções que deixam aquele sorriso irônico no rosto. Tem uma Madalena-Cinderela em parceria com Léo Nogueira e seu olhar de astúcia e sorriso de pelúcia, e uma saudade internética em parceria com Zé Edu Camargo com todos os www ponto com a que temos direito.

Mas não é só isso. Há uma melancolia suave na voz do Cavallieri ao cantar essas canções, em especial uma canção chamada Nostalgia, de Ricardo Moreira, que dá vontade de voltar ao velho e saudoso sofá da casa da primeira namorada e ficar horas olhando pra amendoeira do outro lado da rua, onde as raízes, minhas e dela, se entranharam e se misturaram.

Na parceria com Élio Camalle as emoções procuram calmaria na tentativa de encontrar a ponte que liga o sim ao não, pra logo em seguida se perder no vulcão lascivo de La Sylvia, onde Sonekka e Cavallieri interpretam uma ode doída no Inferno de Dante que existe no fundo de todos nós. Se Sylvia existe eu não sei, o que sei é que essa canção é um dos grandes momentos do CD e foi a primeira a ir pra tecla repeatrepeat e repeat.

A participação de Kléber Albuquerque no CD é um bônus pra quem gosta da boa música, inclusive como compositor, em parceria com Élio Camalle, na música IsoporCavallieri encontrou o ponto exato nos duetos com Kléber (Samba de Uma Noite Só e Isopor) e fez um CD (In Alpha) muito acima da média. Simples e sofisticado pela despretensão de quem se sabe brincante e ao mesmo tempo construtor-operário de sua própria arte. Autêntico,  quando a regra é copiar, original, quando tudo é tão comum e banal.

Parabéns, Cavallieri, seu CD deixou por aqui boas emoções e grande recordações.

Obrigado, Zé Edu, pelo tiro certeiro na nossa aposta. Você prometeu mandar coisa boa, eu só não esperava que seria tão bom assim ganhar/perder aposta sua (quem foi mesmo que perdeu? Já não lembro mais).

Abraços,
Out/2005

*Texto originalmente postado no grupo M-Música.

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Sérgio-Veleiro também está no Caiubi.

Leia seu blog.

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Abaixo, a canção que lhe fizemos

VELEIRO PERDIDO
Affonso Moraes  Alê Cueva – Léo Nogueira

Sou um veleiro estranho
Roubo do mar seu tamanho
Pra caber na imensidão
E, quando me sinto inteiro,
Sou agulha num palheiro
No celeiro da criação

Sou um veleiro perdido
Que só encontra sentido
Quando perde a direção
Não creio na fé que sinto
A fé é um marujo faminto
De uma outra embarcação

Eu sou somente um veleiro
Cruel, porque verdadeiro
E mais fiel que um cão
Fiel a um dono tirano
Meu amigo e oceano
A quem chamo coração

Sou um veleiro estranho
Às vezes, no mar me entranho
Pra que a solidão me banhe
E, quando me sinto parco,
Lembro que sou só um barco
No colo da nave-mãe

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