sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Crônicas Desclassificadas: 7) O Palhaço-Fantasma

A caiubista de Roraima, Lucinda Prado, convidou-me a participar do seguinte projeto do qual ela está à frente:

Escrever um livro de coletâneas de contos de escritores/compositores que fazem parte do Clube Caiubi, agregando-os em torno de um projeto comum que venha buscar as características das relações que se travam entre o louco de rua e a comunidade, e detectar a maneira como o convívio com o louco toca o imaginário popular e produz efeitos culturais. Não se trata aqui de um projeto de estudo facilmente encontrado na esfera das ciências, mas sim um resgate aos valores que vêm se perdendo ao longo dos tempos e que tiveram importância ímpar na compreensão de vida das comunidades ou dos grupos sociais de então, com uma riqueza imensa de valores e forma de lidar com as emoções suscitadas pelas histórias, ao mesmo tempo cheias de humor, de piedade e até de certa maldade [...]

Puxei pela memória e, como me lembrasse de ter tido contato com muitas dessas figuras quase folclóricas de nossa sociedade, resolvi juntá-las, de forma "semifictícia", numa só personagem: 


O Palhaço-Fantasma


Eu achava que ele era meio doidinho. Ou, pelo menos, estranho. Todo dia de manhã, lá pelas seis horas, ele saía, falando sozinho, bem baixinho, como se tivesse rezando, sabe? Ele ia comprar a bengala, que naquele tempo o pão era espichado e chamavam de bengala. E lá vinha ele, de cabeça baixa; tinha a passada curta, mas era ligeiro que só. E sabe o quê? Ele tinha medo de mim. Hehehe! E eu sabia disso, então aí é que eu assustava ele mesmo. Eu ficava atrás dum poste, escondido, e, quando eu escutava sua vozinha e sentia sua respiração (ele tava sempre ofegante, acho que tinha problema no pulmão, sabe?), eu aparecia na frente dele que nem se fosse um fantasma, de garrafa na mão (é que eu gostava de tomar minha caninha, sabe?). Aí eu levantava os braços e fazia “AAAAAHHH!”. Hehehe! Dava gosto de ver, o coitado arregalava aqueles quatro olhos... Ele usava uns óculos fundo de garrafa, sabe? Coitado, tão novo e já com problema nas vistas. Ele me arregalava um olhão desse jeito e se desabalava a correr. Mas até que eu era bonzinho com ele, que eu só assustava ele na ida. Na volta eu tinha pena, porque ele vinha com a bengala e o leite... Quer dizer, da primeira vez, logo que essa família mudou praquela casa, eu assustei ele na volta, daí ele derrubou tudo, o pão se esfarelou e o saquinho do leite (que naquela época o leite era só em saco, sabe?) estourou e foi leite pra todo lado. Daí a mãe dele deu uma sova nele que da rua eu escutei. E daí fui eu que corri, praquele terreno baldio que tinha onde hoje é uma igreja de crente, sabe? E eu sentei no chão, abracei os joelhos, escondi a cara entre os braços e chorei também.

Eu sempre andei bem vestido. Tomar banho era mais difícil, mas roupa nova eu tinha sempre, que eu fazia uns trabalhos pros vizinhos, e eles me davam roupa e comida. Essas coisas, ir no banco, ir no mercado, levar os cachorros pra passear. Eu era assim como o faz-tudo do bairro. Eu só não sabia falar, que eu tinha problema na língua, mas eu podia fazer tudo. E eles me pagavam com roupa e comida. Quase todo mundo do bairro usava meus serviços, menos a família daquele menino, acho que foi porque eu assustei ele naquele dia. Por isso, nunca mais assustei quando ele tava com as mãos ocupadas. Eu lembro que no segundo dia a mãe dele foi com ele. E ele segurava a mão dela bem forte e olhava pro chão. E de repente a mãe dele soltou a mão dele de um sopapo, puxou a orelha dele e mandou ele olhar pra mim e disse: “Tá vendo, é um bobão, tem o miolo mole, não faz mal pra ninguém! Eu vou te acompanhar só hoje, viu? E ai de você se amanhã derrubar o leite de novo!”. E então ele olhou pra mim de olho arregalado e eu dei uma risada bem boa, dessas que eu gosto de dar, e ele se tremeu todinho, e eu fiquei foi contente de ver ele daquele jeito.

Eu sou boa pessoa. O que eu sou é brincalhão. É que eu queria era ser palhaço. Naquela época, de vez em quando vinha o circo e eu gostava de ir. Eu não tinha dinheiro pra pagar, mas eles me deixavam entrar porque eles me conheciam. Acho que eles me conheciam sem nem me conhecer direito, só de olhar pra mim, sabe? E eu gostava de ver as palhaçadas dos palhaços e dos anões, e já dava aquela risadona que depois eu comecei a dar. Mas aí eu resolvi ser palhaço também e comecei a fazer palhaçada, mas todo mundo se assustava, a criançada, sabe? No começo eu fiquei triste, mas depois eu percebi que o susto é a outra metade da risada, daí eu fiquei contente e comecei a assustar a criançada do bairro como se eu tivesse fazendo palhaçada. Assim, meio como se eu fosse um palhaço-fantasma, sabe?

Mas aí foi quando começaram a levantar os barracos. Levantaram um, depois outro, quando eu pensei que não, já tinha bem uns quarenta ou cinquenta. É que, naquela época, naquela rua, só tinha casas dum lado. Do outro era um barrancão sem dono. Daí que, quando as tais das famílias sem-teto perceberam, foram lá e tomaram de conta. Foi aí que eu deixei de ser o palhaço-fantasma. Porque aqueles meninos novos que chegaram não tinham medo de mim, não. Era eu que tinha medo deles. Porque da primeira vez que eu fui assustar eles, eles não tiveram medo de mim, não. Jogaram foi pedra em mim, me cuspiram, alguns me chutaram. Daí que eu virei foi o palhaço deles.

O menino nunca mais saiu pra comprar pão. Bem cedinho, quem eu via sair era o pai dele, um senhor calado, com cara de bravo e um bigodão desse tamanho. Quando eu ficava com saudade do menino, eu parava do outro lado da calçada e ficava esperando ele chegar da escola, trazido pela mãe. Quando ele chegava, ele sentava na escada da casa dele, do lado de dentro do portão, e ficava lá horas e horas, sentado, com uns livros lá e uns cadernos. De vez em quando eu não sei se ele escrevia ou se tava era desenhando, mas tinha hora que ele colocava o lápis na boca e ficava olhando pra mim sem me ver, sabe? Parece meio assim como através de mim, daí voltava e começava a escrever de novo. Entre eu e ele tinha a molecada na rua, jogando bola, empinando quadrado, mas eu olhava era pro menino que ficava trancado do lado de dentro do portão. Todo mundo pensava que eu tava vendo o jogo, mas eu tava vendo era ele.

Eu dormia debaixo do coberto da quitanda do seu Armando. Ele deixava eu dormir lá porque eu fazia umas entregas pra ele. Toda noite, antes de deitar, eu varria o chão. Eu sempre gostei de limpeza. A vassoura que eu tinha era assim meio banguela, que nem eu, então eu demorava horas e horas varrendo pra deixar tudo limpinho. Depois eu tomava minha caninha até pegar no sono. Eu não tive pai nem mãe, nem me lembro de quando eu era criança. Acho que eu já nasci grande. Eu não sabia falar, então, quando eu tentava falar alguma coisa, ninguém entendia, e todo mundo dava risada, então eles ficavam me imitando e eles gritavam “Bora bora bora bora”. Então eu virei o Bora-Bora. E esse foi o único nome que eu tive. Bora-Bora.

O menino foi crescendo e foi perdendo o medo de mim. Às vezes ele até ria pra mim. Então quer dizer que eu deixei de ser o palhaço-fantasma e finalmente virei só o palhaço. Ficamos amigos sem precisar conversar. Todo dia eu ia lá visitar ele e ficava na outra calçada, assistindo ele do lado de dentro do portão com os livros e os cadernos. Os outros meninos, com o tempo, me esqueceram e pararam de me bater. Eles só repetiam “Bora-Bora! Bora-Bora!”, e eu respondia, e todo mundo ria, porque eu voltei a ser só o palhaço. E o meu amiguinho foi crescendo e foi crescendo e cresceu e cresceu tanto que um dia ele não cabia mais na casa dele e foi embora. Mas eu continuei indo lá visitar ele. Só que ele não tava mais lá. Mas era engraçado, que eu tinha a lembrança dele, então eu fechava os olhos e ficava lá, de olho fechado, horas e horas, daí ele voltava e eu via ele de novo, assim de olho fechado. As outras pessoas passavam por mim e riam de me ver assim de olho fechado, e gritavam meu nome, mas eu nem me importava, porque naquela hora eu tava visitando o meu amigo.

Eu nunca fiquei velho. Acho que é porque eu nunca fiz aniversário. Quer dizer, acho que eu fazia aniversário sempre quando alguém me dava uma roupa, um sapato, ou um chapéu, que eu sempre gostei de usar os chapéus que me davam. Eu ficava muito chique de chapéu. Eu nunca mudei, mas o menino mudou bastante quando eu vi ele de novo. Foi uma noite que eu vi ele chegar de carro. Mas eu conheci ele na hora, porque foi ele que me conheceu e me deu aquele sorrisão, porque eu dei aquela risadona que eu gosto de dar. E aí ele deu uma risadona também. Acho que foi a primeira vez que eu vi ele dar risada, assim que nem eu, bem alto. Só que aí foi ele que me assustou, porque outro ele saiu de dentro do carro. Quer dizer, um menino que era igualzinho ele quando era pequeno. Só que esse menino de agora tinha cabelo preto, e o menino grande tinha cabelo castanho. E o menino olhou pra mim e se assustou também. Mas aí o menino que tinha crescido falou alguma coisa no ouvido dele e ele parou de ficar assustado. Acho que ele só fingiu que parou. E por último saiu uma mulher. Era linda! Tinha os cabelos pretos que nem o menino. E eu vi que tinha os olhos puxados, meio fechados, como se ela tivesse dormindo. E ela riu pra mim também um sorriso de quem me conhecia. Porque eu sempre fui assim, todo mundo olha pra mim pela primeira vez e já parece que me conhece, sabe? Mas aí é que eu dou risada. Porque só eu sei que ninguém me conhece.

Mas a coisa foi ficando perigosa, sabe? E eu nem podia dormir lá debaixo do coberto do seu Armando, porque tinha uns meninos que iam lá fumar de noite e gritavam comigo pra eu sair dali. Eu tentava explicar pra eles que lá era minha casa, mas eles gritavam “Sai daqui, Bora-Bora filho da puta!”. E eu dava minha risadona, porque eu nem tinha mãe. E eu não queria sair, sabe? Eles me batiam, eu ia embora, mas depois eu voltava de novo, e eles me batiam de novo, mas eu sou teimoso, e voltava de novo, até que chegava uma hora que eles não tavam mais lá e eu começava a varrer tudo durante uma hora, pra depois eu tomar minha caninha e dormir. Na outra noite eu voltava e eles voltavam e eles me batiam de novo e eu nem sei por quê que eu voltava, se eu já sabia que eles iam me bater de novo, sabe? Acho que é porque eu não tinha outra casa, só aquela, então eu achava melhor correr o risco de apanhar do que perder a minha casa. Porque se eu voltasse sempre, eles iam embora, mas, se eu não voltasse, quem ia ir embora era eu.

Teve uma noite que o menino meu amigo voltou. Ele, o menino pequeno e a mulher de olhos puxados. Essa noite ele não me viu. Nem o menino. Nem a mulher. Essa noite os três pareciam que tavam assustados, como se tivessem me visto quando eu ainda era o palhaço-fantasma. Entraram na casa correndo. Já era tarde, então eu fui pra minha casa. Quando eu tava chegando, eu vi que os meninos que fumavam tavam lá, mas eu continuei indo, porque eu sempre ia. Porque eu era assim, sabe? Nessa hora tudo aconteceu muito rápido. Com o rabo do olho eu vi os pais do menino grande entrando no carro, apressados. O pai dele vinha segurado pelo ombro por ele e pela mulher de olhos puxados, enquanto a mãe trazia o menininho no colo. De repente eu escutei um estouro que nem de fogos de artifício. TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ! De repente eu vi que os meninos que fumavam tavam tudo caído no chão. E de repente eu vi que eu caí também...

Eu fiquei meio tonto, senti uma coisa gozada, mas foi só um segundo, porque eu me levantei bem depressinha e saí correndo sem olhar pra trás. Quando eu achei que já tava meio longe, vi um carro cantando pneu indo na outra direção. Foi aí que eu vi o menino grande sair correndo no rumo dos meninos que fumavam na minha casa. Daí eu vi ele se agachar e segurar a cabeça de um dos meninos. Eu tava meio longe, mas eu vi que ele começou a chorar, porque ele chorava alto. Então eu fiquei cismado, porque eu achava que ele não conhecia nenhum daqueles meninos, sabe? Fazia tempo que ele tinha mudado dali. Mas eu fiquei com pena dele, porque ele tinha esquecido os outros dentro do carro e ficava só ali, chorando, por causa daquele menino que fumava. Então eu fui voltando devagar, sabe? Porque eu tava com pena e também porque eu sempre fui meio curioso. E o carro que atirou já tinha ido embora. Foi aí que eu não acreditei no que eu vi, porque ele chorava e repetia meu nome e falava “Bora-BoraBora-Bora, acorda, Bora-Bora!”. E foi aí que eu vi que era eu que tava lá no chão, todo sujo de sangue, e as lágrimas dele caíam em cima da minha cara, e eu vi que eu tava rindo, mas eu tava rindo não que nem eu, eu tava rindo que nem ele, silencioso.

Foi nesse dia que eu virei só fantasma. Porque agora, quando eu saio de trás de um poste e faço “AAAAAHHH”, ninguém se assusta nem ninguém ri nem ninguém me bate, e eu fico me sentindo muito sozinho, porque assustar alguém é legal, fazer alguém dar risada é mais legal ainda, só apanhar que eu não gostava. Mas agora eu descobri uma coisa que é pior ainda do que apanhar e levar cuspe na cara: O pior é ser ignorado.

9 comentários:

  1. Hoje existem muitos ignorados ignorantes...
    Mas, infelizmente, a maioria, já sem pureza e poesia...
    :(

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  2. Muito bonito Léo. Me fez lembrar as histórias que passei, ou as estórias, que vivi com tanta intensidade, que pareciam reais. Vi-me menino outra vez.
    Abraço!

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  3. Cláudio: a poesia está nos olhos de quem vê. O mais triste é o processo que faz esses tipos serem ignorados, ou pior, aceitados pela sociedade como de responsabilidade de ninguém.

    Salve, Dimi! Grato pela visita. Esse garoto-personagem foi extraído em parte do menino que fui. O interessante foi contar a história pela ótica do observado.

    Abração do
    Léo.

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  4. Mas o sr está me saindo um grande contador..rs...
    Quem não teve uma figura dessa na infância?!
    Querido Leo, vc por acaso curte Orígenes Lessa? Li muito na infância, e não sei pq, alguns de seus textos me remetem ao mestre( pelo menos pra mim..rs..).

    Beijo, amigo!

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  5. Aníssima:

    Desgraçadamente, embora o nome não me seja desconhecido, nunca li nada dele. No entanto, sua dica me é bem-vinda. Me lembrou, inclusive, dos tempos em que me comparavam com Noel sem que eu tivesse jamais ouvido suas canções. Depois, pesquisando, assustou-me a involuntária semelhança.

    Beijos (e vamos lessa),
    Léo.

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  6. Não gostei da história porque achei muito triste, e eu não gosto de histórias tristes. Mas gostei de ler porque está muito bem escrito. Parabéns.

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  7. Valeu, Luc! Mas nem só de histórias felizes vive o homem!

    Abração do
    Léo.

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  8. Recomendo os minicontos de Leonardo Brasiliense. São muito bons !!

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    1. Grato pela dica, Regina. Vou pesquisar a respeito.

      Abraços do
      Léo.

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