Saio às ruas, não sei se à procura de mim ou pra de mim me esconder. O fato é que saio às ruas. Penetro em pulgueiros, bares, drogarias, lupanares, mercados (negros), tomando todo o cuidado pra não penetrar naqueles templos onde todos gritam ao mesmo tempo palavras desencontradas. Quebro à esquerda, depois à direita, passeio pela transversal pisando em versos, com a boca seca e os dentes afiados. As ruas se multiplicam e eu me divido nelas, querendo abarcar todas. As ruas são o lar de meus pés, que, cegos, pisam devagarim, reconhecendo pelo tato, pela planta.
Saio às ruas pisando em ovos, à procura das boas novas (e das velhas). A pedra no caminho me aponta a direção. O caminho é que é minha perdição. Saio às ruas em horas impróprias, soltando impropérios em voz baixa, pra não acordar meus fantasmas. O outro lado da lua ilumina minha face oculta. A rua me catapulta. Driblo bêbados, pedintes, gigolôs, punguistas, viciados, travecos, trabalhadores que não querem voltar pra casa, mulheres que ganham a vida dela (me llaman calle), marginais que nela a perdem... São meus iguais, meus irmãos.
Sigo pelo meio-fio, meio insano, meio vadio, suando desatinos pelos porões dos poros. Às vezes corro, pra demorar mais a chegar (caminante, no hay camino, se hace camino al andar). Caminho só, mas não sozinho. Acompanham-me minhas dúvidas, meus medos, minha coragem travestida, os poemas que não fiz. Mas tanto faz. Mesmo que não tivesse nenhum deles ainda teria o prazer de minha má companhia. Rezo uma ave-maria. Solto um palavrão. O nazareno me entende, saía à procura dos mesmos perdidos (numa noite suja).
Saio às ruas, e a garoa que insistentemente banha meu exterior não é capaz de limpar meus pensamentos. Vou seguindo as migalhas de pão dormido que deixaram os insones joões e marias desta fábula proibida pra menores. Nesse éden endemoninhado todos são serpentes, a maçã é que está os olhos da cara. E o porteiro nos expulsou pra dentro dos portões. Cães ladram e a caravana me perpassa. A banda passa. A uva passa. E eu piso em poças d'almas... às vezes quase sem recheio. Zumbis ambulantes mirabolantes miram um ponto indistinto, na falta de horizonte. Lá onde todo amanhã é ontem.
Saio às ruas e rio, tão livre quanto a mente de um presidiário. Saio às ruas e raio. E arreio meu cavalo encantado, meu pégaso movido a fogo, meu unicórnio gris. Sou o rei. E estou nu. E, de tão triste, de tão traste, sinto-me quase feliz. Entrei numas de brincar de cortar nuvens, como fazem os aviões e os maconheiros. Ops, preciso ir ao banheiro... Voltei, mais leve que um paquiderme, imponente como um verme, vendo passar por mim uma van (dentro da qual ninguém filosofa). Bazófia! Sou vampiro de meu próprio sangue. Cravo os dentes em minha jugular e me locupleto. Vida vento vela leva-me...
Saio às ruas fugindo das ruas que ficaram pra trás e à mercê das que me esperam, espreitam. Quem tem boca vai à fonte, quem tem sede cede. Seda-se. Quem tem Roma vai à Fontana di Trevi. Por aqui só as trevas se atrevem. Imperam. Mas não emperram meus passos, ao contrário, empurram. Tenho tênis e sigo descalço, sem meias palavras. Cada passo é um cadafalso, cada falso, um amigo. Perigoso é não correr perigo. Tô ligado. Encaro olhos oblíquos e sei quando a mentira é sincera (mentiras sinceras me interessam). Não tenho pressa. Saio às ruas sem eira nem beira, dando bobeira, dando de barato o fato de estar vivo. E me divirto. As estrelas que caem me abençoam. E eu assovio o Samba da Bênção (é preciso um bocado de tristeza...).
Olho no olho da rua e reconheço seus becos e seus rios que vão dar em mares de estradas. E eu, náufrago, agarro-me aos cabelos de suas ondas e bebo seu esgoto como se fosse maná; mané. Afogo-me em sua fumaça, encanto-me com suas sereias, marinheiro só, pedro bó. Suas buzinas, seus gritos, suas sirenes e o barulho ensurdecedor (e surdo) de seu desespero. Isso tudo pra mim soa como música. A música que sou. Eu não sou daqui, minha pátria é onde piso, moro nas ruas, levo na trouxa meus segredos (só eu sei as esquinas por que passei). Por aí afora levo cada pó das ruas onde pisei como se fossem fotos de recordação, santinhos, amuletos (esqueletos no armário). Desse barro sou feito. E me movediço. Bem feito!
Saio às ruas em busca não de linha de chegada, mas querendo que elas nunca acabem.
*Tradução minha pra La poesía, de Joaquín Sabina (¡gracias, Ana Vega!).
***
Bônus:
A POESIA*
A poesia foge,
Às vezes, dos livros
Pra se aninhar além-muros
Na rua, no silêncio,
Nos sonhos, na pele,
Nos escombros,
Inclusive no lixo
Onde não costuma se abrigar nunca
É no verbo dos subsecretários,
Dos comerciantes,
Ou dos engomadinhos da televisão
*Tradução minha pra La poesía, de Joaquín Sabina (¡gracias, Ana Vega!).
Adorei!! O texto e a poesía! Quem sabe um dia te acompanho a recorrer essas ruas e com certeza beber umas cervejas, filosofar um pouqunho... e falar das nossas tristezas. Um super beijo.
ResponderExcluirEres mi invitada, Ana!
ExcluirBesos,
Léo.
Triste e lindo!
ResponderExcluirQuase te vi.
Como seia pisar em versos?
Beijos
Ah, você sabe, Lucinda...
ExcluirBeijos do
Léo.