segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Crônicas Desclassificadas: 53) O jogo da verdade

O garçom trouxe a colher que Leandro pedira, e este, fazendo suspense, respirou fundo e lançou um longo e penetrante olhar inquisidor aos demais membros da mesa. Sueli não se conteve e, arfando, pediu pressa. Leandro aproximou-se mais dela e, como quem vai condenar alguém por bruxaria, de colher em riste se aproximou mais dela e disse "BUM!". A coitada quase desfaleceu. Ele, em seguida, deu uma sonora gargalhada e começou, professoral:

"Funciona assim: a gente coloca uma colher na mesa (pode ser um garfo também ou, sei lá, uma garrafa pet), enfim, assim, ó, virada pra baixo, e gira ela, tanto faz pra esquerda ou pra direita. Tipo uma roleta. Na direção de quem ela parar, o cara (ou a mina) vai ter que responder uma pergunta feita por um de nós. Pra não ter briga, a gente respeita uma ordem, da direita pra esquerda ou vice-versa. Se a gente considerar que ele falou a verdade, tudo bem, passamos ao próximo, caso contrário, ele vai ter que pagar uma breja, ou, sei lá, virar uma cachaça, um conhaque ou algo do gênero. Ah, mas ele tem uma opção: ele pode se recusar a responder e virar logo a cachaça (ou pagar a breja). Mas aí não tem graça, né? O legal do jogo são as respostas. E os julgamentos dos outros participantes. Dá pra jogar com dois, mas o ideal é que tenha pelo menos três jogadores. Afinal, quanto mais gente, mais justa vai ser a sentença. Quando a gente joga com apenas dois, o juiz vai ser sempre o outro, daí sua análise pode ser tendenciosa. Mas, se ambos toparem, também rola."

"Peraí, e se o cara tiver falando a verdade e o pessoal considerar que ele tá mentindo?"

"Carlos, isso aqui é um jogo. E jogo envolve blefe, erro do juiz, gol anulado etc. O jogador, pra se dar bem, tem que ter convicção. O nome do jogo é "O Jogo da Verdade", mas, na real, o que vai ser avaliado não é se o camarada tá falando a verdade, é a capacidade do jogador de fazer a maioria acreditar nele. Então, se começar a suar, gaguejar, tremer... aí, já viu, né? Mesmo que esteja falando a verdade, periga passar por mentiroso..."

"Eu, hem? Sei não... Só de pensar em algumas perguntas cabeludas já começo a tremer... Ó como eu tô!"

"Sueli, entenda da seguinte forma: isso aqui é um exercício de autocontrole. Imagine que você tá numa entrevista pra conseguir emprego. Uma ou outra pergunta pode te deixar numa saia justa, não é? Por exemplo: vai que você não tem carta de recomendação da firma anterior porque você colocou ela no pau. Daí você não vai poder dar bandeira. Já tem que chegar lá preparada pra essa pergunta. E se sua contratação depender da resposta que você der? Aí, nega, se começar a tremer desse jeito, vai ser a última pergunta que você vai responder..."

"Pô, tô gostando! Bora começar logo!"

"Calma, Roberto! O jogo é sério, e eu não quero ninguém aqui dando pra trás no meio, senão perde a graça. Alguém tem mais alguma pergunta?"

"Tá, mas na entrevista eu já vou preparada pras perguntas. Aqui podem perguntar qualquer coisa! Vai que..."

"Tá com culpa no cartório, Sueli?"

A gargalhada foi geral. Leandro sabia como envolver as pessoas a seu redor. Tinha lábia de jogador e resposta pra tudo (ou pra quase tudo). O tal do jogo, tal qual ele explicava, fora ele mesmo que o adaptara, na época da faculdade, numa daquelas noites de sexta, quando a turma se reunia depois das aulas pra tomar umas e jogar conversa fora. Na noite em questão o papo não fluía e, como ele sabia que seu amigo estava apaixonado por uma das garotas da classe (que estava na mesa), teve a ideia de fazer alguma brincadeira com a situação, e, do nada, pensou no tal do jogo, do qual já ouvira falar em algum lugar. Mas o fez com pompa e circunstância, dizendo que era um jogo antigo e tradicional que divertia russos já na época de Lênin e aumentava ali o consumo da vodka. Agora repetia as falas com a turma do trabalho.

De quebra, Leandro tinha consciência de que era uma boa tática pra beber de graça, visto que ele era muito bom no jogo. Se fosse um baralho, diríamos ser de cartas marcadas. Estavam em cinco na mesa. Em sentido horário, LeandroSueliCarlosRoberto e Leilaque ainda não se manifestara. Escolheram a ordem das perguntas, tiraram a sorte no jokenpô, e calhou de ser justamente Leandro o que giraria a colher. Estalou os dedos, dando-se ares, e com bazofiada técnica fez girar a colher.

... que foi diminuindo, diminuindo, diminuindo de velocidade até parar em Sueli, que quase soltou um gritinho. Todos riram novamente. Leandro pediu silêncio, pensou um pouco, e tascou:

"Sueli, é verdade que você arrasta uma asa pro dr. Valdir?"

A coitada da gordinha ficou imediatamente escarlate, e já ia dar uma negativa, quando Leandro a interrompeu:

"Pense bem antes de responder. Não temos pressa."

Segundos se passaram. Quando ela, finalmente, tomou coragem, disse:

"Não gostei desse jogo, não. Não quero mais jogar."

"Querida, o jogo nem bem começou! E, ó, todo mundo aceitou as regras. Se você não quiser responder, fique à vontade. É só escolher qual bebida vai entornar. Hahaha!"

"Pede pra sair! Pede pra sair"

Foi o capit..., ou melhor, Carlos que proferiu. De olhos azuis, cabeleira loira "assassinada" com máquina zero pra facilitar sua vida na periferia, ele era o "mano" da turma. Sueli fuzilou-o com os olhos e, digna, disse:

"Eu pago."

Leandro pediu uma cachaça ao garçom (na conta de Sueli, of course), não sem antes lhe dizer que certos silêncios falam mais que mil palavras. Sueli tomou um gole e, ainda rubra, sentiu que lágrimas lhe escapavam dos olhos. Leandro pediu-lhe calma, avisando que aquilo não era nenhum bicho de sete cabeças, era apenas um jogo, bastava entrar no espírito. Todos estavam se divertindo. Foi a vez de Carlos girar a colher. Ela parou nele mesmo. Ele, olhos arregalados, olhou pra Leandro, que com a cabeça assentiu. Lá foi  Carlos de novo, agora sem a mesma força que pusera da primeira vez: Roberto. Carlos, mais relaxado, entrou na onda e perguntou:

"Aí, mano, cê já transou com homem?"

"Isso é uma pergunta ou um convite?"

Nova risadaria geral. Roberto, pernambucano chistoso, mulato bem-apessoado, detrás de seus óculos "fundo de garrafa", vendo o rosto contrafeito do colega, não esperou:

"Oxe, rapá! Tá mangando d'eu? Claro que não! Meu negócio é mu-mu-ié-ié!"

Convenceu. Chegou a vez de Sueli. A colher parou em Carlos. Ela, meio sem saber o que perguntar, pensou um pouco, daí seus olhos brilharam, e ela, como quem não quer nada, desferiu:

"Por que você perguntou se o Roberto já transou com homem? Algum interesse em particular?"

Carlos vinha com a guarda baixa, não esperando que Sueli se recuperasse tão rápido. A pergunta pegou-o desprevenido. Gaguejou uma negativa, querendo saber por que ela fizera essa pergunta, ao que Leandro lhe cortou a palavra, dizendo que não era a vez de ele fazer pergunta. Carlos, então, falou que não tinha nada a ver, que perguntara por perguntar, mas a maioria decidiu que ele não fora convincente. 

Chegou a vez de Roberto. Ele girou a colher, que parou em Carlos novamente.

"Pô, aí já é sacanagem! De novo eu?" 

"Carlos, não tem jeito, é o jogo. A mesma coisa vai se repetir ainda com os outros também. Manda, Roberto."

"Rapaz, me diga uma coisa: você rapa o cabelo é pros fulanos lá do seu bairro não mangarem de tu, é?"

"Ê, mano, tá me tirando? Eu rapo porque eu gosto, ninguém tem nada a ver com isso, não!"

Carlos não deu sorte. Não acreditaram nele. Leandro teve que acalmá-lo, pediu uma cachaça na conta do colega, e o jogo prosseguiu. Vez de Leila. Colher parou em Leandro.

"Por que você resolveu dar a ideia da gente jogar esse jogo? Pra saber algo? Ou pra se esconder de algo?"

"Você fez três perguntas. Mas vou deixar barato. Na verdade, sempre proponho esse jogo quando percebo que o papo não tá fluindo. E também pra gente se conhecer mais fora do ambiente de trabalho. Além disso, se eu quisesse me esconder, por que ia sugerir um jogo que expõe a gente desse jeito?"

Embora tenha percebido encontrar jogadora à altura, Leandro se saiu bem na resposta. Seu rosto não deixou transparecer certo incômodo com a pergunta. E assim foi passando a noite. Aos poucos Sueli se sentia mais à vontade (efeito da cachaça?) e chegara mesmo a se mostrar uma boa jogadora. Afinal, se o que quisera esconder já se havia exposto, não tinha mais muito a perder. Quem não estava se saindo bem era Carlos. Nem tanto por ele, que se esforçava por se convincente; o fato era que a turma, talvez tacitamente, escolhera-o pra Cristo, e, mesmo quando ele respondia a verdade, a maioria achava que era mentira. 

O que não ia bem era o teor alcoólico de Leandro, que subia rapidamente. Tentava, contudo, ser o senhor da situação, induzindo, instigando, irritando mesmo. Ora com perguntas de cunho privado, como "Você ainda se masturba?", ora com perguntas capciosas referentes à empresa, que punham o adversário em situação embaraçosa. Porém, todos estavam alegres, quando não eram o alvo das perguntas. O bar já estava quase fechando, e resolveram que aquela seria a última rodada. Vez de Leila. A colher parou em Leandro.

"Tenho uma proposta, se a turma concordar. Tipo um tudo ou nada. Vou te fazer uma pergunta, daí, se a gente achar que você foi convincente na resposta, você não paga sua parte da conta. Caso contrário, você paga a conta toda."

Todos, já num grau etílico avançado, concordaram, animados e curiosos. Quem não gostou muito da situação de xeque em que se encontrava foi Leandro, acuado em seu próprio campo e sentindo desde o começo da noite que sua autoestima o abandonava aos poucos. Agora era questão de honra. Olhou pra garota a sua esquerda, tentando demonstrar equilíbrio, e, com um risinho amarelo que se fazia de desinteressado, respondeu afirmativamente:

"Claro. O prejuízo vai ser de vocês. Mas vocês vão ter que agir com honestidade, caso contrário eu não pago."

Leila, morena linda, alta, corpo escultural, segura de si em todos os passos, deixando que seu olhar penetrasse a alma do frágil Leandro, branquelo, altura mediana, com uma barriguinha de cerveja e certa expressão pateta de quem se defende atacando... Não fosse o bar tão barulhento, poderiam ouvir as batidas de seu coração. Ela sorriu. Sorriso terrivelmente encantador. Piscou e perguntou:

"Você quer me comer?"

Frisson! O jogador estava em apuros. Sentiu que ia desmaiar. Olhou os demais colegas da mesa, mas todos pareciam desfocados, irreais. Foi como se naquele instante ele fosse acometido por uma espécie de surdez, pois o silêncio era total, apesar da balbúrdia. Reparou todo mundo em câmera lenta, Sueli gargalhava furiosamente, e seu corpo todo sacolejava, como gelatina em terremoto; Carlos sorria com aquela cara de "ufa!" de quem saía da lanterna; Roberto o olhava atenciosamente, como quem acompanha os passos de um jogador prestes a bater um pênalti... O juiz apita. Ele se benze. Corre pra bola. Chuta.

"Quero."

***

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