sexta-feira, 5 de julho de 2013

Crônicas Desclassificadas: 97) "Porque não!"

JLRN, 41, portador do RG XX.XXX.XXX-X e do CPF NNN.NNN.NNN-NN, é um cidadão trabalhador, paga seus impostos e suas contas, não é dado a luxos nem excessos, na pior das hipóteses, se tivéssemos que adjetivar-lhe um defeito, diríamos que de vez em quando gosta de, digamos, molhar o paladar. Pois bem, esse cidadão, de RG tal e CPF tal, contribuinte em dia com seus ônus etc. etc., teve a infeliz ideia de ir ao supermercado Extraordinário (nome fictício, afinal, esta é uma obra de fixação), o gigante da avenida Doce de Brigadeiro, que mantém suas portas abertas 24 horas por dia 363 dias por ano. Pois bem, JLRN dirigiu-se em primeiro lugar à seção de vinhos, escolheu dois argentinos, pela dobradinha custo-benefício. Em seguida foi ao piso superior, onde escolheu três lâmpadas de 90 w. E, como estava lá mesmo, rumou em direção ao caixa mais próximo, que, estrategicamente, ficava naquele mesmo andar.

Lá chegando, notou, satisfeito, que havia apenas um cliente, já sendo atendido. Aguardou, impávido. A caixa, uma morena franzina, com uma cara de "quê que eu tô fazendo aqui?" (era um domingo) e aquele olhar de quem pegou a fila da opacidade dez vezes, com o rabo do olho avaliou as compras de JLRN e lhe perguntou, em voz semiaudível, como quem fala sozinha:

"Moço, o quê que tem aí embaixo das lâmpadas?"

"Dois vinhos."

"Moço, pode passar alimento aqui não."

"Vinho não é alimento. É bebida."

"Pois é. Mas não pode."

"Não pode o quê?

"Não pode passar aqui."

"E por quê?"

"Porque não."

"Porque não?"

"É."

"E por que 'porque não'?"

"Porque não, ué!"

"Peraí, deixa ver se eu entendi direito: quer dizer que é um mercado aqui em cima e outro lá embaixo?"

"Não, ué! É um só!"

O cliente anterior guardou seu cartão de crédito e, lançando um olhar meio constrangido a JLRN, como estava com as mãos ocupadas e não podia lavá-las como Pôncio Pilatos, deu de ombros e foi embora. Atrás de JLRN não havia viva alma. Este emendou:

"Ah, entendi. Então quer dizer que eu posso pagar as lâmpadas lá embaixo?"

A caixa sorriu como quem diz "ufa" e respondeu prontamente:

"Pode!"

"Então por que raios eu não posso pagar os vinhos aqui?"

Sorriso esmaeceu.

"Porque não, moço... Eu já disse!"

"Querida, me explica uma coisa: eu sou cliente, tenho dinheiro pra pagar o que estou comprando, fui lá embaixo, escolhi dois vinhos, vim aqui em cima, peguei três lâmpadas. Por que é que eu não posso pagar aqui?"

A caixa, estampando no rosto uma expressão de quem está escandalizada, quase chorando, como quem implora "não faz pergunta difícil!", sentenciou, categoricamente:

"Porque não, moço!"

"Tá bom, mas onde é que tá escrito isso?"

"Em nenhum lugar, moço! São as normas."

"Ah, entendi! Então quer dizer que quem manda são as normas e o cliente obedece?"

"Moço, isso eu não sei, eu só sei que não pode."

"Se você não sabe, então chama o gerente pra me explicar, porque eu quero entender."

A caixa ficou uns segundos intermináveis paralisada antes de voltar à realidade e acender a lâmpada de alerta.

"O gerente não pode vim (sic), mas se a fiscal disser que pode aí o senhor passa."

"A fiscal manda mais que as normas?"

Silêncio.

Alguns outros clientes chegaram e, na fila, olhavam pra JLRN como se este fosse um inconsequente perturbador da ordem.

Chegou a fiscal.

"Pois não, senhor?"

JLRN relatou o ocorrido e terminou a explanação com um "por quê?", que foi prontamente respondido pela fiscal com um:

"Porque não."
 
Sem poder mais se conter ante o surrealismo da situação, JLRN perguntou, com a voz um grauzinho mais elevada que o de costume:

"E por que não?"

"Ué, porque não pode, moço! É assim que as coisas funcionam. São as regras! Todo mercado precisa de regras..."

Alguns clientes na fila sussurravam desaforos. Como eles tinham pressa, posicionavam-se (sem muita convicção, é verdade) do lado do Extraordinário e, consequentemente, contra o "colega" de compras.

"E se eu desistir de fazer essa compra e não levar nada porque não me deixam pagar, quem perde?"

"O senhor, que não vai levar sua compra."

Tinha lógica.

"Eu só saio daqui quando alguém me explicar por que não posso pagar nesse caixa."

Um tipo de terno e gravata (era domingo, lembram?), não se aguentando, soltou um "Mas isso é um absurdo!", ao que JLRN, virando-se pra ele, justamente pelo motivo oposto, rangendo os dentes, rosnou:

"Também acho!" 

A fiscal, temendo alguma confusão, remediou:

"Moço, vamo fazer assim: eu acompanho o senhor até lá embaixo, aí o senhor paga lá num caixa de baixo. Pode ser?"

"E eu não vou precisar pegar fila?"

"Não. O senhor já pegou aqui."

JLRN, sentindo-se num romance de Kafka (ou num curta de Jorge Furtado), aquiesceu. Desceram. Já no caixa, o tipo de terno e gravata continuava balançando a cabeça e dizendo que aquilo era um absurdo, que onde é que já se vira isso etc. No andar térreo, entre uma infinidade de gente em filas intermináveis, havia um caixa que, sem atender ninguém, futucava o nariz. Provavelmente era um caixa-curinga, pronto pra situações como aquela. Atendeu-o. Não sem antes perguntar o que houvera. JLRN, pensando achar naquele um partidário, contou, com riqueza de detalhes. O caixa, após ouvi-lo, com um sorriso de simpatia no rosto, explicou-lhe:

"É, senhor, realmente não pode. São as regras!"

JLRN, cansado demais pra argumentar, agradeceu pelo esclarecimento, pagou, embalou os vinhos e as lâmpadas e foi embora. Apesar de ter conseguido pagar as compras sem necessitar pegar nova fila, sentia-se derrotado nessa queda de braço com o "Sistema", essa entidade poderosa que dita regras e não faz questão de explicar seus motivos. Encafifado, enquanto caminhava, ia repetindo pra si próprio:

"Mas por que não pode?"

***

PS. Conto desavergonhadamente, e infelizmente, inspirado em fatos reais.


***

10 comentários:

  1. É, esse mundinho cheio de regras sem explicação. E os questionadores (eu incluída) se ferram!
    E seguimos feito boiada...
    Humpf.
    Beijão,
    Danny, lembrando de Zé Ramalho.

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    1. ELA VOLTOU! ELA VOLTOU!!!

      Danny, eu já tava fazendo terapia pensando em sua ausência!!! Teria sido algum comentário jocoso demais de minha parte? Tanto que até o segundo lugar (Ricardo Moreira) nunca mais comentou nada... hehe (riso amarelo)!

      Bem-vinda de volta! Ah, e esteja à vontade pra escrever também quando discordar... Tô acostumado. rsrs

      Beijos,
      Léo.

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  2. Bacana Leo,

    Pois é, não há quem viva na Cabrália por algum tempo que não colecione histórias como essa.

    Fica aqui um textinho de um destes infinitos momentos brasileiros muito gostosos que passei há algum tempo:
    http://www.roneygiah.com.br/index.php?option=com_easyblog&view=entry&id=6&Itemid=320&lang=pt

    Bjs

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    1. Roney, você é um cronista nato! Só costumo ler textos grandes quando são meus (porque preciso revisá-los), mas li o seu com um prazer machadiano!

      Valeu pelo comentário e pelo link!

      Abração,
      Léo.

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  3. Tenho a mais absoluta certeza de que você "enxugou" pra não aborrecer demais seus leitores kkkkkkk
    Beijo e Luz
    Tato Fischer

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    1. Tatíssimo, em nome de nossa amizade vou entender esse "enxugou" sem aspas! Hahahaha. Ou, como riria você, HAHAHAHAHAHA!!!

      Beijo,
      Léo.

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  4. É, sou eu. Sempre questiono regras e quase nunca fico satisfeita com as respostas.

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    1. Queridíssima!

      Em compensação eu fico felicíssimo com sua visita e saudoso daquela época em que nos víamos tão cotidianamente!

      Beijos nocês,
      Léo.

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  5. A pergunta que não quer calar - Será que JLRN, 41, portador do RG XX.XXX.XXX-X e do CPF NNN.NNN.NNN-NN, é um cidadão trabalhador, paga seus impostos e suas contas, algum dia ainda irá a este mercado EXTRAORDINÁRIO que fica na Avenida Doce de Brigadeiro?(sei onde é)

    Não gostei do acontecimento,pensando bem...(sei que você detesta...3 pontinhos kkk )gostei e foi muito!!! Se não tivesse acontecido não teríamos a oportunidade de ler um conto tão tão tão...(não respondo pq não quero.São minhas normas UAI...)

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    1. Hahaha! Valeu, queridona! É, o bom de escrever/compor é que podemos extravasar a indignação de outras formas.

      Beijão,
      Léo.

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