terça-feira, 13 de março de 2018

Crônicas desclassificadas: 191) Me chame pelos seus livros

Depois do turbilhão de emoções — umas boas, outras nem tanto — que ver este filme me causou, fiquei sem saber como começar esta prosa. Daí, resolvi dar o pontapé inicial tratando de um assunto que aparentemente não tem nada a ver com o tema. Seguinte: acabo de ler Mussum forévis, a biografia do trapalhão Mussum escrita por Juliano Barreto (recomendo, inclusive pra quem não gosta d'Os Trapalhões, porque além do mais mapeia grande parte de nossa música), que me fez fuçar vários vídeos no youtube e parar numa entrevista de Renato Aragão concedida a Jô Soares em que ele fala que não entendia a ferocidade da censura em relação a seu trabalho, visto que nada do que fazia tinha a ver com política, e ouve um comentário mordaz de , que lhe afirma que toda exposição de ideias é política.

Isto dito, adentro num terreno pantanoso pisando devagarinho pra tratar dessa obra de arte que é Me Chame pelo seu Nome (do italiano Luca Guadagnino). Não tive oportunidade ainda de ver nenhum outro filme indicado ao Oscar deste ano, mas, independente de se este é melhor ou pior que aquele, de cara — e sem ter visto os demais — já venho por esta declarar meu carinho e minha admiração por esse filme, que é tão moderno quanto antigo. Moderno pela ousadia; antigo pelo clima, pela falta de pressa no contar a história, pela visão irritantemente burguesa de mundo que me fez não poucas vezes ficar incomodado e — por que não? — com inveja de todo aquele tempo livre dedicado ao ócio, à literatura, aos prazeres mundanos, filosóficos, etílicos, artísticos, sexuais etc.

Pra quem vem de uma realidade como a minha, ver um filme desses, com essa exuberância de dimensões geográficas, representa quase uma agressão física. Ver tanta gente vivendo num ambiente bucólico, num rincão lindo da sempre bella Itália, e saltando de idioma tão naturalmente como se trocasse de... livro?... ah... foi um tapa em minhas fuças. No filme, simplesmente as personagens pulam do francês pro italiano, deste pro inglês, deste pro alemão e, se a película durasse mais meia hora, capaz que rolassem mais duas ou três línguas. E eu aqui me phodendo pra aprender japonês(!). E eles lá, lendo, bebendo, tocando música clássica ao piano, dando tchibuns em piscinas e lagos, andando de bicicleta por paisagens exuberantes...

Claro, os bem-nascidos amantes do bom cinema — brasileiros ou não — não devem ter perdido um segundo de seu tempo pensando essas asneiras que pensei, e não os culpo; tampouco culpo a mim. Porque, apesar desse mal-estar, consegui amar o filme. Afinal, estou acostumado a, como um narciso às avessas, não achar feio o que não é espelho. Ao contrário, acho feio apenas o espelho — 時々. Foi assim que me deparei com muitos dos clássicos da literatura europeia dos séculos XVIII e XIX (18 e 19, belê?), que tratavam apenas de problemas comezinhos dos endinheirados de sangue azul da época. Isso não me tirava o interesse pelo livro. Embora um Eça de Queiroz, um Charles Dickens e um Victor Hugo tra gli altri — me redimissem.

Voltando ao filme, foi irritantemente belo ver a falta de pressa de cada tomada, o que me remeteu àqueles velhos romances com trocentas páginas em que o autor gastava dezenas delas tratando de detalhes sem importância nenhuma pra história, e simplesmente porque ele TINHA tempo — e seus leitores idem. Tratando de cinema, em pleno século XXI (21, belê?) isso sim é ousado. Tão ousado que chega a ser blasé, como foi blasé Godard quando disse em certa ocasião que se dava por contente se visse que numa sala de cinema havia somente meia dúzia de pessoas vendo seus filmes, mas atentas. Como se dissesse "meus filmes realmente são pra poucos, pardon". Coisa de quem quando faz arte nem por um segundo pensa nas contas pra pagar.

O que não tira a beleza de sua arte. Muito pelo contrário. Talvez, essa seja a verdadeira arte e eu esteja aqui com uma inveja da moléstia desses que podem se dar a esse luxo quando na verdade toda arte devia ser assim. Todo artista devia ter condições de urdir suas criações sem concessões, sem pensar na corda se aproximando de seu pescoço, sem pensar no risco do fracasso a cada novo filme, livro, disco, quadro ou seja lá o instrumento por meio do qual se expresse. Se bem que na outra extremidade isso também ocorre, ou seja, do lado dos que, como eu, nunca ganharam nada — ou quase nada — com sua arte, tampouco temem perder algo com ela — porque não têm nada a perder. Nesse sentido, as extremidades se irmanam, deixando espremida em seu meio aquela classe medíocre que nem está tanto ao céu nem tanto ao mar. Atenção: falo de arte, não de sociedade.

Minha língua está ferina/felina hoje; relevem. Deve ser culpa do vinho (in vino veritas). Entretanto, nesse filme de pedigree pelo qual o belo — em todos os sentidos — e poliglota ator Timothée Chalamet, 22, recebeu uma — merecida, diga-se — indicação ao Oscar de melhor ator (pensem em, por exemplo, um Cidade de Deus... será que alguém ali seria lembrado a melhor ator pela "Academia"?), a parte que mais me tocou — com o perdão do spoiler — foi a rápida conversa que sua personagem, (homos)sexualmente em crise, teve com o pai. Realmente, fui às lágrimas ali. Amo meu pai, um doce de pessoa, mas é de encher os olhos imaginar um filho que tenha um pai tão à frente de seu tempo — coisa de dar inveja até (com o perdão do sacrilégio) a Jesus.

Pra terminar, vejo-me obrigado a acrescentar, contudo, que, em meio a essa beleza toda, quase arrogante (lembram?, toda exposição de ideias é política), talvez a coisa que tenha sido pra mim mais irritante/encantadora foi ver como o artefato livro está tão vulgarmente acessível em todos os lugares — e saibam que hoje em dia até no avançado Japão o consumo de literatura está em queda. Nesse filme, o livro é uma passiva personagem à parte, mas onipresente, quase como se fosse pão — pra quem tem fome. Isso, deveras, foi o que mais me deixou com inveja. Livros a mancheia — e tempo pra lê-los. Perto disso, a sexualidade do garoto — em torno da qual o filme gira — vira, pra mim ao menos, questão menor. Tudo o que eu queria era tempo, o dólar (euro? ... iene?) mais precioso pra um humilde cearense em Tóquio.

Dores à parte (ou por causa delas), o filme é cinco estrelas.

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