domingo, 4 de março de 2018

Grafite na Agulha: 45) Vinicius & Toquinho e seu traçado de paixão e dor

"Como é que pode a gente ser menino/ Ter sua coragem, traçar seu destino/ Sem pular o muro, trepar no coqueiro/ Ir no quarto escuro, mãe me mete medo, mãe me mete medo, mãe me mete medo/ O bicho te pega, boi da cara preta/ Deus te castiga, medo de careta/ Boi da cara preta, mãe me mete medo, mãe me mete medo, mãe me mete medo/ Mas atravesse o escuro sem medo (3x)/ De repente a gente começa a crescer/ Quer uma mulher que não pode ser/ O pai quer matar, a mãe quer morrer/ Não dá pra ganhar, não dá pra perder/ Não dá/ A mulher se joga do alto do edifício/ Porque o mais fácil fica o mais difícil/ Fica o mais difícil/ Mas atravesse a vida sem medo (3x)...

"... O perigo existe e faz parte do jogo/ Mas não fique triste, que viver é fogo/ Veja se resiste, comece de novo/ Comece de novo, comece de novo/ Ao cruzar a rua você está arriscando/ Pode estar na lua, pode estar amando/ Passa um caminhão, cruza uma perua/ O cara tá na dele, você tá na sua, você tá na sua, você tá na sua/ Mas atravesse a rua sem medo (3x)/ Chega um belo dia de qualquer semana/ Alguém bate na porta, é um telegrama/ Ela está chamando, é um telegrama/ Ela está chamando/ Pra uns ela vem cedo/ Pra outros vem tarde/ É que cedo ou tarde, ela vem de repente/ Chega pro covarde, chega pro valente/ Só tem que ninguém gosta de ir na frente/ Gosta de ir na frente/ Gosta de ir na frente/ Gosta de ir na frente/ Mas atravesse a morte sem medo (3x)"

A letra acima é de uma das canções que mais me marcaram na vida e que, por obra do destino, acabei conhecendo primeiro em italiano. Explico: como alguns leitores já sabem, no fim da adolescência, por motivos amorosos (que agora não vêm ao caso), acabei estudando italiano. Daí, durante a aprendizagem me deparei com um sem-fim de canções brasileiras vertidas ao italiano e me apaixonei perdidamente por um disco chamado La voglia, la pazzia, l'incoscienza, l'allegria (1976), de uma cantora maravilhosa chamada Ornella Vanoni, dedicado inteiramente à obra de Vinicius & Toquinho (e gravado em parceria com eles). Aliás, como eu era ainda jovem, muitos outros clássicos regravados nesse disco conheci primeiro na língua de Dante.

Anos depois, já inteiramente arrebatado pela MPB e, claro, pela magnífica obra de Toquinho & Vinicius, descobri o excepcional Vinicius & Toquinho, de 1974, que continha o tal Senza Paura, mas no original. Não preciso dizer que "caí de quatro". Inclusive, já escrevi sobre essa dupla em outro texto desta coluna (aqui). O lance é que meu grande mano Carlos D'Orazio, velho companheiro de copo e de faculdade (não nessa ordem) e músico/poeta amador, talvez saudoso de minha presença nas etílicas mesas paulistanas enviou pra minha audição/avaliação uma interpretação sua de A Carta que Não Foi Mandada, pra qual dei nota 7, mas que me fez recordar esse maravilhoso disco. Se eu tivesse certeza de que ele escreveria a respeito, teria deixado o trabalho a cargo dele, mas, como o conheço, resolvi eu mesmo escrevinhar algo.

Muito do que sei sobre essa obra-prima li numa excelente biografia do poetinha escrita por João Carlos Pecci, irmão de Toquinho (e que escreveu também outra bela biografia sobre o "Toco"), chamada Vinicius sem ponto final, que deve estar mofando na estante do velho (põe velho nisso!) amigo Rodrigo Campos, que tomou emprestada de mim a obra e nunca me devolveu. Não o culpo, de minha parte ainda hoje tenho uma coletânea de Olavo Bilac pertencente a ele que guardo como garantia de que algum dia ainda terei de volta a bela viniciana biografia. O que importa é que esse livro foi responsável por eu ter saído à procura da obra de Vinicius feita em parceria com Toquinho, que, já disse antes, pra mim representa o auge do poetinha como letrista de MPB.

Neste trabalho, por exemplo, que é de 1974, ou seja, 16 anos depois do lançamento do disco Canção do Amor Demais, em que Elizeth Cardoso gravou pela primeira vez futuros clássicos da bossa nova, vemos um Vinicius que, letristicamente falando, arriscava versos mais ousados que aqueles dos "abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim" e que ainda se preparava pra posteriores ousadias ainda maiores. Aliás, por falar em Elizeth, nesse mesmo disco a dupla a cita (e a Jobim) no sucesso Carta ao Tom 74, dos famosos versos "Rua Nascimento Silva, 107, você ensinando pra Elizeth as canções de Canção do Amor Demais". Mas se antes de conhecer o disco eu me havia apaixonado por Sem Medo, aliás, Senza Paura, agora, ouvindo-o de cabo a rabo, a canção que mais me tocava era esta, com a qual termino a prosa, Tudo na Mais Santa Paz:

"Tranca bem a porta, amor/ Fecha a janela e passa a tramela, por favor/ E se não se importa, amor/ Defuma a casa em nome de Nosso Senhor/ Acabou a festa, amor/ Ainda tem uma cerveja no congelador/ Vamos ao que resta, amor/ Dia de festa é véspera de muita dor/ E se o fantasma ficar?/ E se o cachorro latir?/ E se o silêncio gritar? E se o pavor assumir?/ E se a mulher não topar? E se o amigo sumir?/ E se o relógio parar?/ E se amanhã não surgir?/ Tudo na mais perfeita ordem/ Tudo na mais santa paz." Duka, não? Quem nunca se deparou com uma depressão no dia seguinte a uma festa que atire a primeira taça. Pra finalizar, contudo, queria só comentar um detalhe peculiar: além da diferença geracional entre ambos (Vinicius era 33 anos mais velho que Toquinho), pra mim soava engraçado ver o poeta carioca cantar o R paulista ao passo que o melodista paulista forçava no S (xis) carioca. Fora isso, tudo na mais perfeita ordem, tudo na mais santa paz.


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Vinicius & Toquinho (1974 — Philips)


Lado A
1. Como É Duro Trabalhar
2. Samba da Volta
3. A Carta que Não Foi Mandada
4. Triste Sertão
5. Carta ao Tom 74 — participação do Quarteto Em Cy
6. Canto e Contraponto — participação do Quarteto Em Cy
Lado B
1. Samba pra Vinicius* — participação de Chico Buarque
2. Sem Medo
3. Samba do Jato
4. As Cores de Abril
5. Tudo na Mais Santa Paz
Todas as canções são de Toquinho e Vinicius de Moraes, exceto *, de Toquinho e Chico Buarque.


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Ouça o disco na íntegra: 



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PS: De brinde, a canção que originou tudo:

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