sexta-feira, 30 de março de 2018

De Sampa a Tóquio: 14) De terremotos e outros tremores

Fazia tempo que não voltava a esta coluna, e devo satisfações à leitora interessada e ao leitor estressado. Quando cheguei aqui, tinha a intenção de escrever regularmente a respeito de minhas experiências — a saga do cearense em Tóquio —, mas os afazeres do dia a dia foram me afastando do intuito. Explico: nos primeiros dias, tudo era novidade — claro, já tinha vindo outras vezes, mas nunca pra morar. No entanto, com o passar do tempo o que era novidade deixou de o ser e a preguiça foi tomando conta de mim. Até porque sempre quis que os relatos fossem interessantes, e escrever por escrever, geralmente coisas sem importância do cotidiano, pareceu-me uma perda de tempo tanto pra mim quanto pra quem lesse.

Pra resumir, conto que passei dias difíceis e mesmo à beira da depressão — porém, sempre acompanhado de um saquê a preço módico, o que por si só já faz uma baita diferença —; ingenuamente, achei que aprenderia japonês com mais facilidade e mais rapidamente, o que não ocorreu. Estudo e aprendo a duras penas e aos trancos e barrancos. Por causa dessa deficiência, perdi trabalhos que estavam à mão e estive em vias de voltar pro Brasil com o rabo entre as pernas (e "sem dar nem um pio", né, Poli?). Entretanto, quase no fim do tempo regulamentar consegui um trabalho (futuramente tratarei dele) e as águas turvas se acalmaram. Agora, mesclando essa segurança, digamos, laboral, e juntando a ela algumas aulas, por fim, temporariamente, consegui um pouco de paz (とりあえず). Preciso agradecer publicamente ao amigo Willie Whopper, dono do Barzinho Aparecida, que tem sido uma espécie de anjo de carne e osso nessa minha fase nipônica. Que fique registrado nos documentos oficiais de meu coração. 


Isto posto, conto ainda que tenho jogado futebol todos os domingos — ou quase —, o que também tem sido um grande aprendizado pra mim. No primeiro dia, cheguei meio botando banca pelo simples fato de ser brasileiro. Em campo, a realidade foi outra. É verdade que estou com 46 e a maioria dos japas que jogam comigo está na casa dos 20 — e os caras correm que é uma barbaridade —, mas a verdade mais verdadeira é que tenho visto muitos jovens habilidosos, o que me faz crer que num futuro próximo o Japão poderá estar entre as grandes forças futebolísticas mundiais. Pra isso, falta apenas que tirem um pouco o olho da bola, pois eles não aprenderam ainda que futebol se joga menos com os pés e mais com a cabeça — metaforicamente cabeceando.


Uma coisa com a qual não me acostumei ainda — e com a qual acho que jamais vou me acostumar — são os constantes tremores de terra. Praticamente toda semana ocorre ao menos um. Em geral, cada sismo dura poucos segundos, mas me parece uma eternidade. Por curiosidade, pesquisei um pouco a respeito, sobretudo voltando minha pesquisa a Tóquio, que é onde vivo, e descobri — sem querer, num livro japonês de ficção — que os toquiotas se referem ao tal do The Big One, ou o Grande Terremoto, que seria um sismo de grande magnitude que estaria em vias de acontecer por aqui. Pode parecer aos de fora que se trata de futurologia, mas o fato é que Tóquio de tempos em tempos sofre algum grande abalo, e já faz um tempão que ocorreu o último.


Pra ser mais exato, foi no dia primeiro de setembro de 1923, ou seja, há quase 95 anos. Nesse terremoto, que segundo a Wikipedia alcançou 8,3 graus na escala de Richter, morreram 105.385 pessoas e outras 37 mil desapareceram, sendo depois dadas como mortas. Foi chamado de o Grande Sismo de Kantō — esta, uma ilha japonesa de Honshu, onde o terremoto teve origem — e "destruiu a cidade portuária de Yokohama e as prefeituras vizinhas de Chiba, Kanagawa, Shizuoka e Tóquio". Pra se ter uma ideia, "o sismo conseguiu mover a estátua de 93 toneladas do Grande Buda em Kamakura, situada a 60 km do epicentro — a estátua deslizou cerca de 60 centímetros". Quando penso nessas coisas, sinto um calafrio percorrer meu corpo inteiro.


Resolvi escrever sobre o assunto hoje (30/3) porque de manhãzinha fui despertado por um pequeno tremor, ou um "terremotinho" (como masoquista e carinhosamente o chamo) que durou novamente poucos segundos. Findo o dito cujo, virei-me pro outro lado e continuei a tratar do assunto de elevada importância ao qual me dedicava antes de ser incomodado, ou seja, dormir; só que não passei pela experiência impune. Tive um pesadelo horrível em que me vi no meio de um terremoto e à espera de um tsunami, pesadelo desses tão reais que parecem ser verdadeiros. Contudo, após algumas passagens kafkianas, acabei percebendo que era sonho e tratei de acordar o mais rápido possível. Meu método foi estapear o rosto diversas vezes até ser arrancado do sonho, mas (oh terror dos terrores!!!) me vi congelado, sem poder mexer um só músculo do corpo.


Assim, embora sabendo que era um sonho, não tive outra alternativa que não fosse ver o "filme" até o fim. Meu lado racional, sabedor de que tudo aquilo não era real, ficou mais tranquilo; entretanto, o lado que vale de verdade, que é o dos sentimentos, por pouco não me propiciou a vexante experiência de fazer xixi na cama. Foi por pouco! Acordei finalmente tão cansado e com o corpo tão maltratado como se tivesse tomado uma surra de faixas pretas de judô. Ainda agora me doem algumas partes desta alquebrada carcaça. Pelo menos, ficou a história pra contar. Mas, pensando bem, preferiria não ter nada pra contar. O preço não foi barato.


Pra terminar, ainda pensando nisso tudo, quando saio às ruas e olho o semblante dos japoneses, que já passaram por tantas tragédias entre as causadas pelo homem e as naturais (lembrando que vira e mexe o Monte Fuji entra numas de acordar), não deixo de vê-los com um olhar de respeito e admiração, pois têm no semblante aquele ar de seriedade mesclado com uma passiva resignação que só possuem aqueles acostumados às fatalidades — e aos fatalismos. Talvez por isso esses camaradas bebem pra cacete. Costumo voltar do trabalho por volta das 23h e lá vai pedrada e sempre quando entro no vagão do metrô já sinto no ar aquele etílico cheiro acre que impregna todo o ambiente. E a coisa mais comum é ver pessoas — homens e mulheres — de todas as classes sociais cambaleando como mendigos que acabaram de levar um lero com a cachaça mais barata. Mulheres lindas quase não suportam caminhar sobre seus saltos e elegantes e "enternados" homens de negócios viram chaplinianas personagens.


O que me fez chegar  à seguinte conclusão: acho que eles bebem tanto esperando que, talvez, caso o Big One chegue, encontre-os mais preparados pra encará-lo. Agora, vocês me deem licença que acho que vou ter que tomar uma. Inté!


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