segunda-feira, 25 de junho de 2012

Trinca de Copas: 12) Guilherme Costa, Lalo Guanaes e Marcio Policastro

1) ESTUDANTE DO MUNDO

Já contei aqui que quando me classifiquei num festival pela primeira vez cheguei à cidade ansioso por conhecer os outros participantes, no intuito de fazer novas parcerias. Também contei que quebrei a cara, pois a maioria agia mais como adversária que como colega. Por essas e outras sou um tanto crítico desse formato que a maioria dos festivais usa. E há uns critérios que são realmente absurdos!

Não devia tratar disso aqui, mas me deu vontade, então, tratarei. Há alguns dias meu mano Adolar me ligou tristíssimo avisando que nossa canção Baião de Um, que se classificara no festival de Tatuí, havia sido desclassificada porque não era inédita. Pensemos: Adolar a gravou num CD com tiragem de 1.000 cópias. Qual é a população do Brasil? A matemática é simples, uma canção lançada em tal CD não pode ser desclassificada de um festival por conta de um detalhe tão ridículo. O critério deveria ser: a canção é inédita em Tatuí? Perdemos a chance de ver uma de nossas mais queridas canções executada por uma orquestra por um raciocínio tacanho... 

Voltando: graças a Deus nem todos os participantes de festival têm a vista curta. Certa vez conheci um camarada do Paraná que, além de ser um baita gente boa, era também um compositor muito bom. Não lembro em que cidade estávamos, acho mesmo que nos encontramos outras vezes, mas o importante foi que ele me pediu uma letra e eu lhe enviei. Não tenho certeza, mas acho que foi antes de Cristo...

Pois bem, há coisa de dois meses o mesmo rapaz, de quem eu nunca mais tivera notícia, me adicionou no facebook e me avisou que havia musicado aquela letra. Eu me lembrava dele, mas da letra, não! Ele me mandou a gravação e, pouco tempo depois, um vídeo com ele a interpretando com sua banda no Sesc da cidade de Paranaguá-PR. Pra vocês verem como é bom vivermos numa época em que a internet nos faz viajar sem sairmos do lugar.

Por falar em viajar, a letra dessa canção, que fala de outras viagens, é antiga pra caramba, de um tempo em que eu vez em quando metia um Paulo Cesar Pinheiro nas ideias. Contudo, relendo-a, posso afirmar que, apesar disso, ela me resume bem. Aproveito pra dedicá-la a todos os amigos que, por um motivo ou por outro, escolheram desprezar minha companhia.

Ah, quase me esquecia: meu querido parceiro nessa canção se chama Guilherme Costa. Valeu, Guilherme!



ESTUDANTE DO MUNDO
Guilherme Costa - Léo Nogueira

O meu amor é profundo 
E o meu ódio é raso
Não vim aqui por acaso
Sou estudante do mundo

A multidão me esconde, 
A solidão me acompanha
Escuto a voz da montanha 
E beijo a língua do longe

Quem se mostrar meu amigo, 
Não vai ficar no caminho
Mesmo que eu siga sozinho 
Vou levar todos comigo

Sei pilotar meu destino, 
Sei ir do fim a o começo
A cada dia envelheço 
E continuo um menino

O medo me dá coragem, 
O sono me deixa alerta
Pego o que a vida me oferta 
E sigo minha viagem

Um dia vou, sem atraso, 
Vou dormir em outro astro
Mas vou deixar o meu rastro, 
Não vim aqui por acaso

***

2) GARRAFAS AO MAR

O extinto Prêmio Visa de MPB, produzido pela Rádio Eldorado, era um acontecimento que mobilizava a nata da música brasileira. Por conta de sua credibilidade e da visibilidade que dava aos premiados, todos queriam participar, mas poucos eram os escolhidos. Os de fora diziam mesmo que era um festival bairrista, mas o engraçado foi que, quando um carioca venceu (Fred Martins), o Prêmio acabou...

Bairrista ou não, o fato é que poucos amigos/parceiros meus se classificaram durante esses anos todos em que o tal festival existiu. Acho que a palavra exata não era "bairrista", e sim "elitista". Mas não vim aqui tratar de defuntos, mas da forma curiosa como compus (em parceria com o caiubista Lalo Guanaes) uma canção que veio ao mundo justamente por causa do tal festival.

Não lembro em que ano foi, lembro apenas que faltavam poucos dias pra se encerrarem as inscrições quando Lalo me deu uma fitinha (!) com uma melodia e me pediu pra pôr-lhe uma letra em caráter de urgência, pois ele a queria inscrever nesse festival. Lembro-me apenas de que ele a iria gravar na segunda-feira seguinte, portanto, eu tinha menos de uma semana pra letrá-la.

Durante a semana, entre um afazer e outro, punha-a de vez em quando no toca-fitas e ficava ouvindo-a, pra ver se a bendita da inspiração me visitava. Adoro esse processo de letrar melodias, meu problema é que não gosto do ato de compor por compor, quero, antes, ser arrebatado pela melodia, quero que ela converse comigo e que ambos nos seduzamos.

Finalmente chegou o sábado, e nada de eu fazer a tal letra... À noite resolvi lhe dedicar um tempo seriamente, e fiquei lá, estatelado no sofá, ouvindo-a e reouvindo-a, mas a cada nova audição a inspiração parecia mais distante. Acho que cheguei a ouvi-la umas cem vezes. E o desespero foi me tomando, fiquei mesmo invocado, pois nunca tive o hábito de desistir de uma melodia. Sempre pensei que nenhuma melodia é feia, apenas existem aquelas mais, digamos, difíceis, mas aquela estava exagerando na dificuldade...

Entrando pela madrugada, desisti. Daí fiquei pensando no que diria a Lalo. Sentia-me ferido em minha dignidade, meio como quem acaba de dar uma brochada. Daí, pensando nisso, resolvi fazer algo que até então não tinha feito: relaxar e ouvir a melodia sem maiores pretensões que a de simplesmente apreciar a audição. E eis que a mágica se deu!

Fechei os olhos e não pensei em nada, deixei a melodia fluir. Quando acabei de ouvi-la, com os olhos ligeiramente marejados, pu-la pra tocar novamente, pois tinha ficado com uma pulga atrás da orelha por conta de algo que me chamara a atenção. E, eureca! Lalo, em vez de cantar o lalaiá padrão nesses casos, cantou uma espécie de onomatopeia que era algo como "opapatupá papatupé". Claro! Como eu não tinha pensado nisso antes? "O sapato quer, além do pé, um par"! Ou seja, o próprio Lalo, em seu jeito de cantar a melodia, soprara-me, sem querer, a letra!

A partir daí, foi correr pro abraço... Em poucos minutos a letra estava pronta. Na segunda, como previsto, Lalo gravou-a em voz e teclado, com o luxuoso auxílio de Leonardo Costa ao violão, e inscreveu-a no festival. Não se classificou, e eu fiquei realmente chateado, pois, modéstia à parte, é uma de minhas parcerias favoritas, e essa gravação como um todo (música, letra, arranjo, instrumentos e voz) é linda. Percebam que, embora boa parte dos versos termine com a palavra "par", há um jogo de rimas internas. Bem, ouçam-na e tirem suas próprias conclusões:

GARRAFAS AO MAR
Lalo Guanaes – Léo Nogueira

Dom Quixote, na estante, quer um par
O sapato quer, além do pé, um par
Quem não dança quer, quem não tem fé, quer par
Mesmo o órfão quer, o órgão quer, um par

Quem ficou no altar,
Garrafas ao mar

Até Deus, que ímpar é
Até Deus, que é ímpar, quer

Também o ladrão, e até um cão, quer par
Quem trai a nação, quem faz canção, quer par
O astronauta, quando o ar falta, quer
O vigário, quando diz amém, também

O ponteiro, quando dá as horas, quer
Toda brincadeira,
Toda solidão,
Quem ouve o adeus
Até Deus, que ímpar é
Até Deus, que é ímpar, quer
E até quem ninguém quer*

*Esse último verso foi originalmente composto e gravado como "Até eu, que ninguém quer". Depois Lalo ficou meio cabreiro e me disse, "Léo, não dá pra trocar esse verso? Não é lá muito boa propaganda assumir que ninguém me quer...". Dei-lhe razão e tirei o "eu", resolvendo assim a parada. Afinal, como dizem, toda panela tem sua tampa.

***

3) PORTO DE GALINHAS

Tenho, brincando, umas 40 canções com Marcio Policastro. É questão de química, entrosamento, de saber ouvir e interagir. E, além disso, é uma parceria instigante, porque como sei que Poli (pros íntimos) é dos melhores letristas que conheço, procuro me esmerar mais ainda quando sei que a letra que estou fazendo é pra ele.

Não que não me esmere em todas as letras que faço, mas é que cada caso é um caso. Cada parceiro tem uma característica, e um bom letrista precisa entender essas nuances da musicalidade de cada um pra chegar a um resultado que tenha a ver com quem vai cantar a canção. E eu, com raras exceções, costumo ter essa percepção. Claro que foi um aprendizado que levou tempo, aliás, continuo aprendendo em cada nova parceria que surge.

Mas vamos à bendita Porto de Galinhas do título, que tem uma história das mais interessantes. Poli havia composto uma canção chamada Será que Eu Tô Viajando?, mas não estava satisfeito com o resultado. Embora gostasse da melodia e da letra, algo o estava incomodando. Depois de muito pensar, descobriu o que era: letra e música não falavam a mesma língua. Ao passo que a letra tinha um humor despudoradamente machista, a melodia sugeria algo mais denso, daí o contraste que ele notara e que o incomodara.

Como fazia tempo que ele e Sonekka ensaiavam uma parceria, Poli percebeu que talvez aquela letra fosse perfeita pra inaugurar tal parceria. E Sonekka, ao receber a letra, não perdoou e fez-lhe uma melodia perfeita, que valorizou cada verso. Inclusive a gravou em seu Agridoce (vocês podem ouvir Será que Eu Tô Viajando? e outras aqui). E Poli, então, ficou com uma melodia vaga.

Daí que alguns dias depois ele apareceu em casa e me mostrou a melodia. Curti-a pra caramba e a gravei num MD, se não me engano. Passamos a tarde conversando sobre vários assuntos, e, em determinado momento, ele me disse que estava bastante chateado, pois sua então namorada (hoje esposa) ganhara da família uma viagem pra Porto de Galinhas, famosa praia de Pernambuco. E, como Poli não havia podido ir junto, estava na maior fossa. Chegara mesmo a discutir com ela por telefone... Ao ouvir sua desventura amorosa percebi que já tinha assunto pra melodia que ele me dera.

Mal ele foi embora, comecei a trabalhar sobre sua melodia e na mesma noite terminei a letra da canção que viria a se chamar justamente Porto de Galinhas. Quando lhe mostrei, não sei se ele ficou mais emocionado ou puto por eu ter feito de um assunto tão íntimo letra de música. Mas sua namorada adorou, e eu não fui só absolvido, como também promovido. Afinal, ou muito me engano ou Porto de Galinhas foi nossa segunda parceria. Mas foi ela a responsável por termos ambos percebido que rolava ali uma afinidade que poderia render muitas canções. E rendeu. E continua rendendo... A ela, pois:

PORTO DE GALINHAS

Às vezes eu te sinto quase como irmã
Já outras, te enxergo como amante
Um talismã de mãe, tsunami no calmante
Um armistício

E então você me acorda de manhã
Um interurbano, Porto de Galinhas
E eu vejo que se abre em duas linhas
Um precipício

E aí você me chama de banana
Eu perco a pose e solto um palavrão
Tô me lixando se você tem grana
E eu só um coração

Se eu sou banana, vem e me descasca
Seu peito é um Alasca, pega esse avião
Um Porto de Galinhas é só ilusão
Seu porto é um chão de asfalto cru na minha mão

Meu peito, eu sei, parece um barraco
Mas no fundo ele é barroco e arranha o céu
Pode entrar, eu aceito, mas não é seu direito
Dentro dele fazer babel

***

6 comentários:

  1. >Há alguns dias meu mano Adolar me ligou tristíssimo avisando que nossa canção Baião de Um, que se classificara no festival de Tatuí, havia sido desclassificada porque não era inédita. Pensemos: Adolar a gravou num CD com tiragem de 1.000 cópias. Qual é a população do Brasil? A matemática é simples, uma canção lançada em tal CD não pode ser desclassificada de um festival por conta de um detalhe tão ridículo.<

    Desculpe, Léo san, mas neste pormenor eu discordo. Teu blog tem até o momento quase 42 mil visualizações. Qual é a população fã de MPB e que tem acesso à Internet no Brasil e no mundo? Podemos então dizer que teu blog não existe? Para mim, uma canção num CD com tiragem de 100 cópias já não é inédita, embora possa merecer muito mais cópias e acessos. Um e-abraço.

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    1. Ayrton, agradeço pela visita e pelo comentário, mas a questão que quero levantar não é sobre o que é inédito ou não, é sobre essa necessidade de que uma canção seja inédita pra que seja classificada num festival. É esse pensamento que faz que os festivaleiros nunca gravem suas melhores canções, o que os leva a permanecer com o pé no amadorismo. Entendeu?

      Abração do
      Léo.

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    2. Ah, sim, por esse ponto de vista eu concordo, sobre a infeliz obrigatoriedade do ineditismo das canções. Um e-abraço.

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    3. Que bom! Empate técnico então. Hahaha!

      Abração,
      Léo.

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  2. Olá parceiro Leo Nogueira, sabemos que toda canção tem sua história e, pelo jeito, "Garrafas Ao Mar" nasceu à forceps, rsss... Generosidade a sua dizer que a soprei pela forma onomatopaica de canta-la, o mérito da letra é todo seu.
    Embora não tenhamos classifcado no extinto Premio Visa de MPB, considero nossa canção um casamento perfeito entre letra e música, uma das mais completas que assino em parceria ou individual, se não, a mais completa! Gosto de nossas outras parcerias também e pretendo gravá-las logo em breve.
    Valeu Leo Nogueira, fiquei feliz em relembrar o nascimento de "Garrafas ao Mar" e nossa parceria misical.
    Grande Abraço,
    Lalo Guanaes

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    1. Lalo, parceirão!

      Acrescento apenas que Noel Rosa também nasceu a fórceps. Assim, mais importante do que o modo como nasceu é a qualidade dela.

      Abração do
      Léo.

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