terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 74) A Esquerda com que sonhei (+ carta de Saramago)

No intuito de fazermos justiça, precisamos tomar muito cuidado pra não nos tornarmos iguais aos que criticamos. Quem quer criticar devia ser o primeiro a dar o exemplo. Mais, devia SER exemplo. Tenho visto e lido absurdos praticados por uma esquerda "engajada" que endureceu, mas perdeu a ternura. Essa não é a esquerda com que sonhei. A esquerda com que sonhei não era pra ser intolerante, berrar a plenos pulmões xingamentos a pessoas a quem não dão o direito de se defender, como fizeram com a blogueira cubana Yoani Sánchez em Feira de Santana, que, se deixassem, teriam queimado numa fogueira. Isso não é esquerda, é inquisição. 
Se até os culpados confessos têm direito a defesa, o que dizer daqueles cujas culpas não passam de suposições ou intrigas? Julgamentos são (ou deviam ser) baseados em fatos, em provas, não em teorias de conspiração. A esquerda com que sonhei devia usar mais a gentileza do que a truculência, devia usar mais os ouvidos do que a boca, devia se acostumar a pôr mais as barbas de molho antes de atirar a primeira pedra (e todas as seguintes). Devia perceber de uma vez por todas que, se tudo o que alguém disser pode ser usado contra ele, há que se ter cautela com o que se diz, pra não se tornar um peixe fisgado pela boca pelos pescadores da direita.

A esquerda com que sonhei não era pra acreditar em santos vivos e canonizá-los sem que fosse feita uma profunda pesquisa (investigação?) sobre eles. Tomemos como exemplo a trabalheira que a Igreja Católica tem antes de canonizar um novo santo. Não tiro os méritos de Fidel Castro nem de seu pupilo Hugo Chávez, muito pelo contrário, acredito que são peças de suma importância nesse xadrez contra o capitalismo selvagem, mas... Mas se se tornam tão selvagens quanto os outros, se proíbem, calam, prendem, torturam, matam, mentem, não agem muito diferente dos generais que andaram pululando pela América Latina não faz muito tempo...

A esquerda com que sonhei não era pra usar as armas do adversário pra tomar o lugar dele, pois, nesse caso, entre um e outro não existe diferença. É como no caso do mensalão. Tenho um imenso respeito pelas biografias de José Genoíno e José Dirceu, e acredito mesmo que não fizeram o que fizeram com a intenção de enriquecer, mas querer comprar políticos adversários é jogar o jogo deles, com suas regras, e ter que se sujeitar a suas punições. Se não tivessem sido julgados e condenados, o que em nome do bem não seriam capazes de fazer em dez, vinte anos? Se, como disse Paulo Betti, "não dá para fazer política sem botar a mão na merda", não seria o caso de lutar por uma nova política?

Desde que nos entendemos por gente sabemos que tipos como José Sarney, Paulo Maluf, Fernando Collor de Mello, (o finado) Antônio Carlos Magalhães, Renan Calheiros, Michel Temer e mais uma infinidade de figurinhas manjadas do cenário político brasileiro não são exatamente pessoas com quem se queira (ou deva) andar junto. A esquerda com que sonhei não era pra ter seu nome atrelado ao de figuras assim, porque, se votamos pra trocar seis por meia dúzia, a eleição perde sua importância e seu significado. Na esquerda com que sonhei um senador como Eduardo Suplicy jamais teria que ser coagido a votar em Renan Calheiros pra presidente do Senado.

A esquerda com que sonhei era pra ressuscitar a ideologia em vez de tratar a política como um grande mercado. O pensamento de um indivíduo não devia estar à venda, não devia ser moeda de troca. A esquerda com que sonhei não era pra leiloar ministérios nem cargos menores, ao contrário, devia varrer pra longe a lepra da corrupção, pois sabemos que todo mundo tem um preço e, quanto mais próximos permanecemos de tais "leprosos", mais chances temos de contrair sua doença. E há manchas que são indeléveis, não saem nem com cirurgia plástica. No máximo podemos escondê-las com maquiagem, mas elas têm a capacidade de nos penetrar entranhas adentro, manchando nosso caráter.

A esquerda com que sonhei era pra zelar pela liberdade de imprensa, por mais que haja revistas ou jornais a serviço de escusos interesses. É o preço. Melhorando a educação geral, em pouco tempo todos seríamos capazes de identificar tais interesses. Afinal, não existe nada pior do que uma imprensa única, de cabresto, contratada apenas pra promulgar os prós e empenhada em esconder os contras, como há em tantos lugares, como em Cuba, por exemplo, onde até mesmo grandes escritores cubanos foram varridos das bibliotecas, como se nunca tivessem existido, simplesmente por se darem o luxo de discordar. Uma esquerda que em nome da igualdade social proíbe a liberdade intelectual não é a esquerda com que sonhei.

A esquerda com que sonhei era pra procurar métodos de, em vez de abaixar a cabeça pros detentores do dinheiro em sinal de subserviência, ao contrário, encontrar saídas, criar leis (e pô-las em prática) que obrigassem que parte dessas grandes fortunas fossem direcionadas a saúde, educação, trabalho, lazer etc.; devia achar urgente um Robin Hood, pois o medo dos que tinham medo está se transformando em ódio, e uma pessoa que não tem nada a perder, e detentora de tal sentimento, pode causar um estrago grande numa sociedade capitalista projetada pra aumentar fortunas, e não espalhá-las. A esquerda com que sonhei talvez só diga respeito a mim, mas tenho certeza de que essa que está aí não tem agradado nem àqueles que, como robôs, a defendem, talvez por medo.

Àqueles que não têm discurso próprio e rezam por cartilhas coletivas digo que, sim, continuo à esquerda, só tenho percebido que ou a bússola dessa esquerda que aí está quebrou ou ela trocou de bússola...

***

Aproveito pra postar carta que José Saramago escreveu há quase dez anos, quando do fuzilamento de três dissidentes pelo regime castrista. Tenho quase certeza de que a bússola dele era da mesma marca da minha:

Até Aqui Cheguei
por José Saramago

Até aqui cheguei. De agora em diante, Cuba seguirá seu caminho, eu fico. Discordar é um direito que se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras. Discordar é um ato irrenunciável de consciência. Pode ser que discordar conduza à traição, mas isso sempre tem que ser demonstrado com provas irrefutáveis. Não creio que se tenha atuado sem deixar lugar a dúvidas no julgamento recente do qual terminaram condenados a penas desproporcionais os cubanos dissidentes. E não se entende por que, se houve conspiração, não tenha sido expulso já o encarregado do departamento de interesses dos EUA em Havana, a outra parte da conspiração.

Agora chegam os fuzilamentos. Sequestrar um barco ou um avião é um crime severamente punível em qualquer país do mundo, mas não se condenam à morte os sequestradores, sobretudo tendo em conta que não houve vítimas. Cuba não ganhou nenhuma heroica batalha fuzilando esses três homens, mas, sim, perdeu minha confiança, lesou minhas esperanças, decepcionou minhas ilusões. Até aqui cheguei.

***

A carta acima (traduzida aqui por mim) foi publicada no dia 14/04/2003 no jornal espanhol El País (aqui). Segue abaixo, no original:


Hasta Aquí He Llegado
por José Saramago



Hasta aquí he llegado. Desde ahora en adelante Cuba seguirá su camino, yo me quedo. Disentir es un derecho que se encuentra y se encontrará inscrito con tinta invisible en todas las declaraciones de derechos humanos pasadas, presentes y futuras. Disentir es un acto irrenunciable de conciencia. Puede que disentir conduzca a la traición, pero eso siempre tiene que ser demostrado con pruebas irrefutables. No creo que se haya actuado sin dejar lugar a dudas en el juicio reciente de donde salieron condenados a penas desproporcionadas los cubanos disidentes. Y no se entiende que si hubo conspiración no haya sido expulsado ya el encargado de la Sección de Intereses de EE UU en La Habana, la otra parte de la conspiración.

Ahora llegan los fusilamientos. Secuestrar un barco o un avión es crimen severamente punible en cualquier país del mundo, pero no se condena a muerte a los secuestradores, sobre todo teniendo en cuenta que no hubo víctimas. Cuba no ha ganado ninguna heroica batalla fusilando a esos tres hombres, pero sí ha perdido mi confianza, ha dañado mis esperanzas, ha defraudado mis ilusiones. Hasta aquí he llegado.

2 comentários:

  1. Ainda sonho com a esquerda que você sonha.

    Num País que estivesse construindo o Socialismo essa mulher não teria a menor importância, se tem, é porque lá não se constrói o Socialismo.
    Lá o poder não está nas mãos de Obreros e Campesinos, está nas maõs de gente que usurpou esse poder.
    Como aqui, os velhos sonhos já foram enterrados e os "marxistas" não passam de social democratas à moda européia do século XX.
    Contudo, o sonho não acabou.

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    1. Claro que não, Rolan. Se tivesse acabado as pessoas sairiam às ruas em massa pra saquear. Contudo, é um sonho a conta-gotas. Só não sei é com relação à importância da blogueira nesse país que você imagina. Ela está certa em suas reclamações, é esperta, articulada e não me pareceu pró-EUA. Estar contra algo não significa necessariamente estar a favor de seu oposto. O mundo não é dual.

      Abração,
      Léo.

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