É de uma simbologia muito grande que o primeiro relato desta coluna trate do LP Chega de Saudade,
pois, incontestavelmente, esse disco revolucionou a música não só do
Brasil, mas também do mundo! E a simbologia torna-se maior ainda pelo fato de o
texto ter sido escrito por esta figura única que é Luhli (de quem tenho o orgulho de ser parceiro), pois ela já
foi corresponsável por outra revolução musical, na condição de compositora de O Vira e Fala (ambas em
parceria com João Ricardo), dois sucessos que
marcaram uma geração e pertencentes ao histórico primeiro disco dos
Secos & Molhados. Mas a mulé é muito mais, se eu começar a falar a
respeito dela, não termino hoje. Aliás já falei, no Ninguém me Conhece;
pra ler o texto basta clicar em... Luhli! Agora chega de
por-enquantos e vamos aos finalmentes, ou melhor, ao Chega de
Saudade!
Antes, um detalhe: como convidei várias pessoas a dar sua contribuição em forma de texto, pode ser que algum disco se repita, mas isso também é interessante, pois, embora a bolacha venha a ser a mesma, a lembrança será sempre diferente, o que enriquecerá mais ainda a importância de tal disco em nosso cancioneiro, pois poderá ser visto (e ouvido) por vários prismas. Agora sim, Chega...
Chega de Saudade
Por Luhli
Não é coisa que se possa esquecer, aquele silêncio que se fez ao redor, o jeito como meu mundo parou, quando ouvi pela primeira vez aqueles acordes tortos. A musica era Chega de Saudade, que chegou para virar de pernas pro ar toda a minha estética musical. Passei a ficar horas a fio mexendo no dial do rádio, numa varredura sistemática, procurando aquele som em todas as estações. Logo passei a caçar também o Desafinado, ainda mais torta e estrambótica, que me fez suar no violão até descobrir que ela começava num tom e terminava meio tom acima. Deixei de comprar meu Grapette em muitos recreios, molhando meu sanduíche na água do bebedouro, até ter o suficiente pra comprar o elepê do João Gilberto. Aquele com a foto dele olhando pra gente, com a cara apoiada na mão.
O Chega de Saudade.
Eu pousava com delicadeza a agulha no sulco, para não arranhar o disco, e ia, violão na mão, desvendando os acordes nota por nota, começando pelos baixos, repetindo dez, cem, mil vezes, até que a sonoridade fosse igual, até copiar toda a harmonia de cada música. Depois foi ficando fácil, já reconhecia os acordes que se repetiam, aprendi depressa as sequências-chave e todos os truques da mão direita. A batidinha, essa eu batucava no chuveiro, na mesa, na carteira, nos livros, no violão, até ficar exímia naquela de atrasar e adiantar compassos, de bambear nas divisões.
Eu
era uma menina com os peitinhos mal nascendo, que desde os 7 anos vivia
mergulhada na música que me alegrava a alma de criança asmática e me
fazia respirar melhor, enquanto cantava em vez de chorar. Era ainda um
pingo de gente com
cabelos chamejantes quando minha irmã me ensinou os primeiros acordes, e
logo batia um sambinha melhor do que ela.
Meu maior troféu foi um violãozinho que ganhei aos 8 anos, que vivia pendurado no meu pescoço, e eu dormia abraçada com ele, como se fosse meu ursinho de pelúcia. Eu logo percebi que com uma dúzia de acordes podia tocar quase tudo que escutava no rádio, os foxtrotes e sambas, as valsas e marchinhas, até os baiões de Gonzaga, que eram a última moda. Eu brilhava nas festas de família, no recreio do colégio, muito segura de minhas harmonias, dona de todos os ritmos. E de repente chegou aquela música diferente onde eu não me reconhecia, onde minha certeza naufragava numa delícia sonora, numa viagem em dimensões desconhecidas de harmonia.
Os médicos dizem que a menina deixa de ser criança quando sangra, os poetas afirmam que é quando ela se apaixona. Mas eu virei mulher ali, desvendando novas batidas no coração, descobrindo as dissonâncias das emoções, aprendendo o malabarismo do balanço e a malícia sedutora daquela bossa. Hoje a bossa é velha, ficou eterna, é coisa digerida, assimilada. Se multiplicou em diversas direções, teve com o jazz muitos filhos, e todos foram felizes para sempre. Mas nada se compara à emoção daquela agulha suspensa sobre o negro vinil. Chega de Saudade. Os primeiros beijinhos em minha boca.
Antes, um detalhe: como convidei várias pessoas a dar sua contribuição em forma de texto, pode ser que algum disco se repita, mas isso também é interessante, pois, embora a bolacha venha a ser a mesma, a lembrança será sempre diferente, o que enriquecerá mais ainda a importância de tal disco em nosso cancioneiro, pois poderá ser visto (e ouvido) por vários prismas. Agora sim, Chega...
Chega de Saudade
Por Luhli
Não é coisa que se possa esquecer, aquele silêncio que se fez ao redor, o jeito como meu mundo parou, quando ouvi pela primeira vez aqueles acordes tortos. A musica era Chega de Saudade, que chegou para virar de pernas pro ar toda a minha estética musical. Passei a ficar horas a fio mexendo no dial do rádio, numa varredura sistemática, procurando aquele som em todas as estações. Logo passei a caçar também o Desafinado, ainda mais torta e estrambótica, que me fez suar no violão até descobrir que ela começava num tom e terminava meio tom acima. Deixei de comprar meu Grapette em muitos recreios, molhando meu sanduíche na água do bebedouro, até ter o suficiente pra comprar o elepê do João Gilberto. Aquele com a foto dele olhando pra gente, com a cara apoiada na mão.
O Chega de Saudade.
Eu pousava com delicadeza a agulha no sulco, para não arranhar o disco, e ia, violão na mão, desvendando os acordes nota por nota, começando pelos baixos, repetindo dez, cem, mil vezes, até que a sonoridade fosse igual, até copiar toda a harmonia de cada música. Depois foi ficando fácil, já reconhecia os acordes que se repetiam, aprendi depressa as sequências-chave e todos os truques da mão direita. A batidinha, essa eu batucava no chuveiro, na mesa, na carteira, nos livros, no violão, até ficar exímia naquela de atrasar e adiantar compassos, de bambear nas divisões.
Luhli |
Meu maior troféu foi um violãozinho que ganhei aos 8 anos, que vivia pendurado no meu pescoço, e eu dormia abraçada com ele, como se fosse meu ursinho de pelúcia. Eu logo percebi que com uma dúzia de acordes podia tocar quase tudo que escutava no rádio, os foxtrotes e sambas, as valsas e marchinhas, até os baiões de Gonzaga, que eram a última moda. Eu brilhava nas festas de família, no recreio do colégio, muito segura de minhas harmonias, dona de todos os ritmos. E de repente chegou aquela música diferente onde eu não me reconhecia, onde minha certeza naufragava numa delícia sonora, numa viagem em dimensões desconhecidas de harmonia.
Os médicos dizem que a menina deixa de ser criança quando sangra, os poetas afirmam que é quando ela se apaixona. Mas eu virei mulher ali, desvendando novas batidas no coração, descobrindo as dissonâncias das emoções, aprendendo o malabarismo do balanço e a malícia sedutora daquela bossa. Hoje a bossa é velha, ficou eterna, é coisa digerida, assimilada. Se multiplicou em diversas direções, teve com o jazz muitos filhos, e todos foram felizes para sempre. Mas nada se compara à emoção daquela agulha suspensa sobre o negro vinil. Chega de Saudade. Os primeiros beijinhos em minha boca.
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Chega de Saudade - João Gilberto (1959 – Odeon)
Lado A
1. Chega de Saudade
(Tom Jobim – Vinicius de Moraes)
2. Lobo Bobo
(Carlos Lyra – Ronaldo Bôscoli)
3. Brigas, Nunca Mais
(Tom Jobim – Vinicius de Moraes)
4. Hô-bá-lá-lá
(João Gilberto)
5. Saudade Fez um Samba
(Carlos Lyra – Ronaldo Bôscoli)
6. Maria Ninguém
(Carlos Lyra)
Lado B
1. Desafinado
(Newton Mendonça – Tom Jobim)
2. Rosa Morena
(Dorival Caymmi)
3. Morena Boca de Ouro
(Ary Barroso)
4. Bim Bom
(João Gilberto)
5. Aos Pés da Cruz
(Marino Pinto – Zé da Zilda)
6. É Luxo Só
(Ary Barroso – Luiz Peixoto)
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Ouça o LP na íntegra aqui (com direito a Manhã de Carnaval de bônus):
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Oi Léo,oi Luhli,
ResponderExcluirUma delicia ler o primeiro texto dessa série.Lulhli que bom que você teve a oportunidade de se ver "mulher" aos sons das batidas da "velha Bossa" fico aqui imaginando um adolescente de hoje escrevendo um texto semelhante daqui uns anos e descrevendo a emoção(ou falta dela) quando deixou de ser criança ao som das batidas do N.....(não vou escrever o nome pois posso ser processada kkkk)
Breve também estarei por aqui,vou pegar minha senha.
Beijos e parabéns!
Valeu, Lucinda!
ExcluirBeijos,
Léo.
Maravilha...
ResponderExcluirNé não, Denilson?
ExcluirClássico!!
ResponderExcluirValeu, Mayra!
ExcluirMagnânimo! adorei essa coluna! Legal pra gente curtir as referências desses nomes que pra mim são reverências de sons. Luhli, adorei seu texto. Esse LP é realmente transformador! Daisy Cordeiro
ResponderExcluirAssino embaixo, Daisoca!
ExcluirBeijão,
Léo.
Maravilha de texto, como tudo que essa mulher faz!
ResponderExcluirBeijos,
Danny.
Elementar, minha cara Danny. rs
ExcluirBeijoca,
Léo.