Não pretendo estabelecer aqui uma ordem cronológica, tampouco
classificatória, pois sensibilidade é um bicho esquisito que muda dum
dia pro outro (qualquer semelhança com o sexo feminino é mero
propósito). Assim, respeitando-a, escreverei ao sabor dos ventos
lembrantícios. Então, se hoje eles quiseram soprar nesta direção, e como
nem eu nem Paulinho da Viola nos navegamos, quem nos navega é o mar,
deixo a brisa me levar. No mais, tratar deste camarada em meu primeiro texto tem um
significado que não dá pra exprimir através de palavras (mesmo porque
elas não são vidraças, embora possam ser janelas), mas, como sou
teimoso, tentarei, por meio de outras palavras. Com vocês, o admirável:
Zé Ramalho é dez!
Por Léo Nogueira
Pois bem, já que, sem querer querendo, quando dei por mim me
encontrava em pleno processo, não de Kafka, mas de escrever uma "autobiografia" aqui por
meio de um blogue, tomei umas e outras (mais outras que umas) e resolvi,
já que tenho a costumeira falta de noção de me expor demasiadamente (e
já que estou por aqui mesmo), mapear o que sou por meio do que
ouvi/ouço. Não, não vim aqui apenas fazer um relato de discos alheios, vim
mais uma vez me desnudar, rubro, mais envergonhado que o mais
inocente entre os culpados, enfim, vim traçar um perfil da música
brasileira (y de otras) sob a ótica de minha lente, de cinco graus...
A intenção é tratar dos discos que me (incon)formaram. Fazer uma faxina no cérebro e espanar o pó do som de meus conterrâneos, de meus contemporâneos, de meus
antecessores e de meus... enfim, dos meus! E resolvi começar por este
cabra justamente por um detalhe dos mais bestas: estava eu neste
domingo, mais conhecido como 3 de junho de 2013*, sozinho (Kana
viajara, pra variar), olhando pela janela um céu plúmbeo (adoro essa
palavra... acho mesmo que sou um ser plúmbeo!), tomando um vinho barato
("Ana, teus lábios são labirintos...") e me lembrei de ir atrás
dos primórdios... musicais, deixemos claro. Ou escuro. O fato é que...
... o fato é que eu iria agir como um tremendo de um hipócrita se este primeiro relato tratasse de Beatles ou de Rolling Stones.
Não, queridos leitores, nada de revolucionário que ocorreu em minha
vida, musicalmente falando, é claro, devo a essas duas bandas. Ok, não
desgosto delas, e reconheço sua importância (vim mesmo a gostar bastante delas tempos depois), só que não vivi seu auge, muito menos herdei de meus
pais tal gosto. Aliás, tenho a impressão de que meus velhos nem sabem quem são
(ou foram) esses boys. O que prova que Lennon estava enganado ao se achar mais conhecido que Jesus.
Mas deixemos os ingleses de lado. Pois vim aqui dizer pura e
simplesmente que minha primeira grande viagem de despirocação musical se deu por
meio de um paraibano chamado... Zé Ramalho! Sim, senhores! Um zé, que nem eu. Eu, um zé do Ceará; ele, um da Paraíba.
E o modo como cheguei a ele foi dos mais
interessantes. Além disso, como vocês irão notar, nem se tratou de um
disco de carreira, mas de uma compilação... e o pior: uma compilação
alheia! Mas era uma compilação tão particular, que me sinto como se
tivesse sido seu único dono. E, obviamente, não fui o único pobre do
mundo a gozar com o... o disco dos outros. Afinal, um disco é como um livro.
Não precisamos trancafiá-lo num baú no sótão pra que seja mais precioso.
Por vezes o prazer compartilhado (diria até na maioria das vezes) é
ainda mais autêntico. Que o digam os livros de bibliotecas públicas, que
já passaram de mão em mão (como as profissionais do sexo) e nem por
isso perderam o dom de dar prazer.
Mas voltemos, que hoje eu sou todo divagações... Chegamos ao momento
das explicações: antes deste disco (e depois dele, obviamente) tive
muitos outros que me marcaram, mas este, em particular, foi pra mim
revolucionário. Foi assim: no então segundo grau conheci um
grande amigo mineiro, negro, chamado Eustáquio, que morava perto
de casa com outro amigo mineiro, branco, ambos vindos de Divinópolis.
Assim, passei a frequentar a casa onde viviam ambos. E o amigo de Eustáquio, Luciano
(um magrelo alto com um nariz de dimensões icebérguicas que jamais se adaptou ao clima paulistano),
adorava beber (comer, dormir) ouvindo a tal compilação do supracitado Zé!
E eu adorava ir à casa da dupla (não, eles não eram um casal), com outros amigos
do colégio, levando umas brejas. Lá chegando, eles apagavam as luzes, e
ficávamos horas bebendo, papeando e ouvindo, às escuras, Zé Ramalho nos ensinar sobre
Orwell, umas tais camisas de vênus num chão de giz, um avô que era pai, os papiros de Papillon, as papoulas na terra do fogo, os que viviam calados pendurados no tempo, a esfinge que era mulher e outras esquisitices que pra nós eram tão psicodélicas quanto se se
tratassem das que soavam do outro lado do hemisfério. Por essas e outras eu tenho de reconhecer que devo a esses dois mineiros o privilégio de ter me iniciado
nesse som do car... digo, do Ramalho.
É, meus caros, ninguém escolhe onde nem quando nasce. E,
afinal, somos todos resultado desses milagres da relatividade. Tenho uma
amiga roqueira que me recrimina por ouvir (e compor) uma tal de MPB.
Tampouco eu gosto de siglas, mas, se não for honesto com meu passado,
como serei com meu futuro? O lance é o seguinte: ninguém escolhe onde e
quando nasce (tô me repetindo, eu sei, mas foi só pra enfatizar): eu
nasci no Ceará, e me emborraché ao som de Zé Ramalho, o que me
dá um baita orgulho, por saber que ele é mais nordestino que eu e por
saber, ademais, que uns amigos mineiros o tinham em alta conta. De modo que poderia tratar de tanta gente neste primeiro relato, mas, por livre e
espontânea (força de) vontade, escolhi o Ramalho! Afinal, por conta de meu destino um som nordestino me cai bem melhor que um londrino.
***
*Data em que comecei a escrever este texto. Como viram, demorei pra terminá-lo.
***
Dez anos – Zé Ramalho (1980 e...? – CBS)
Lado A
1. Admirável Gado Novo
(Zé Ramalho)
2. A Terceira Lâmina
(Zé Ramalho)
3. A Peleja do Diabo com o Dono do Céu
2. A Terceira Lâmina
(Zé Ramalho)
3. A Peleja do Diabo com o Dono do Céu
(Zé Ramalho)
4. Beira-Mar
4. Beira-Mar
(Zé Ramalho)
5. Vila do Sossego
5. Vila do Sossego
(Zé Ramalho)
6. Ave de Prata
6. Ave de Prata
(Zé Ramalho)
Lado B
1. Avôhai
Lado B
1. Avôhai
(Zé Ramalho)
2. Mistérios da Meia-Noite
2. Mistérios da Meia-Noite
(Zé Ramalho)
3. Orquídea Negra
3. Orquídea Negra
(Jorge Mautner)
4. Chão de Giz
4. Chão de Giz
(Zé Ramalho)
5. Jardim das Acácias
5. Jardim das Acácias
(Zé Ramalho)
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Ouça o LP na íntegra aqui:
***
Demais!!! Como eu gosto eu gosto de Avohai!
ResponderExcluirComo gostamos, Márcia!
ExcluirGrato pela visita!
Léo.
"Admirável gado novo" é demais. Zé Ramalho é dez! Lucia Helena Corrêa
ResponderExcluirE você é 11, Lucia!
ExcluirBeijão,
Léo.