terça-feira, 19 de dezembro de 2017

De Sampa a Tóquio: 11) Minha mulata que foi morar debaixo da terra

Nós, os escritores, 
fazendo pose de escritores
E não é que o velho Noel Rosa (São Noel! — como diria Vinicius, a bênção, Noel!) tem me auxiliado por aqui? Eu, que sempre fugi de dar aulas como o diabo foge da cruz (dizem), começo a achar um novo caminho em terras nipônicas... e justamente dando aulas. As segundas-feiras no Aparecida têm sido pra mim tão agradáveis que nem parece que tô trabalhando — o que me leva a crer que, em se tratando dos alunos, a recíproca deva ser verdadeira. A experiência adquirida em tantos anos de aprofundamento não só na língua portuguesa, mas também na música popular brasileira, agora começam a me valer e, obviamente, tenho tirado partido disso.

Na segunda aula, que ocorreu em 18/12, continuei com Noel. Trouxe pra aula outra versão de Fita Amarela, dessa vez com Zeca Pagodinho. Depois de assistirmos ao vídeo, passamos à dissecação da letra, palavra por palavra, verso por verso. Só que algumas palavras eu escondi (escolhi dez), então começamos um jogo de adivinhação (descoberta?) das palavras ocultas e, após todos as terem desvendado, a brincadeira seguinte foi uma proposta ousada, mas das mais interessantes: cada aluno escolheria uma dessas palavras e, utilizando-a, inventaria uma frase. Entretanto, cada frase seguinte deveria estar encadeada à anterior, formando com o todo um pequeno conto. Claro, ajudei a lapidar, mas o trabalho pesado ficou a cargo deles.

Conto finalizado, perguntei-lhes se alguém entre eles já havia antes enveredado pelo campo da ficção e, ao ouvir que não, senti imensa satisfação por ter-lhes proporcionado essa experiência. E a satisfação foi recíproca: vi nos olhos de cada um uma alegria quase juvenil pela travessia desse portal. Claro que tudo não passou de uma brincadeira, mas afinal o ato criativo não é uma grande brincadeira? Pedi-lhes autorização e, de posse dela, trouxe pra cá este primeiro conto coletivo, que pra mim também foi uma experiência inédita. Ah, antes de passarmos a ele, ainda gostaria de acrescentar um detalhe não de todo irrelevante: o humor mordaz da letra de Noel — e o uso de palavras extraídas de sua letra — contagiou a todos, o que nitidamente refletiu no teor do conto. Vamos a ele?


Minha mulata que foi morar debaixo da terra
Por Higashi, KumiLéo, Michi, Nobu e Sakura (em ordem alfabética, pra não ferir egos)

CAPÍTULO 1


Pra minha namorada, eu queria comprar um caixão grande. Mas não posso comprar um grande porque eu sou pobre. No entanto, sua alma vai subir ao céu seja com um caixão grande ou um pequeno.

Eu chorei ao violão pensando nela e lhe compus um choro. Pensei também em lhe comprar muitas flores, mas decidi apenas escrever uma letra de choro pra minha mulata.

Não deixarei que seus inimigos compareçam a seu funeral.

CAPÍTULO 2


Chegou o dia do funeral e lá de repente eu ouvi um desconhecido gritar:

— Ninguém te amou como eu!

Avancei a seu encontro e, enlouquecido de ciúmes, bati tanto no infeliz até ele comer terra. Minha mulata sempre me foi fiel e não merece levar pro túmulo essa difamação.

FIM

***

PS1: As dez palavras destacadas em vermelho foram as que escolhi pra servirem de base ao conto.

PS2: Não custa nada terminar com a canção que deu origem ao conto, não é mesmo?

FITA AMARELA
Noel Rosa

Quero que o sol  
Não invada o meu caixão
Para a minha pobre alma
Não morrer de insolação

Quando eu morrer,
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

Se existe alma
Se há outra encarnação
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão

Não quero flores
Nem coroa com espinho
Só quero choro de flauta
Violão e cavaquinho

Estou contente,
Consolado por saber
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer

Não tenho herdeiros
Não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos
Mas não paguei a ninguém

Meus inimigos
Que hoje falam mal de mim,
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim

***




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