Caro irmão de tantas batalhas:
Temos sido bravos
durante esses anos todos. Acostumados às porradas, ao nãos, a
portas fechadas, a "por aqui você não passa", a "quem você pensa que
é?"; sim, porque quem somos afinal? Órfãos de regalias, nos forjamos
nossa própria paternidade. Aprendemos que os atalhos sempre nos levaram
pelo caminho mais longo. A sola de nossos pés é uma dura crosta, por
causa de tamanha caminhada. Nosso couro é resistente, nosso olhar é fixo
(não podemos perder o contato visual, lembra?). Mas nosso sorriso é
franco, nosso abraço é mais reconfortante que a cama mais macia do
quarto mais luxuoso. Porque não somos frios e sabemos nos aquecer com o
que levamos dentro de nós. Nosso coração é uma labareda incandescente (e
explosiva) capaz de deixar o sol rubro de vergonha.
Sim, temos sido incansáveis guerreiros, confiantes
de que essa "causa" que só existe dentro de nossas quixotescas cabeças é
a certa e, portanto, venceremos, pois pertencemos ao lado certo (mas
não pensarão assim todos?). Daí que nossa fragilidade nos ensina a
transformar lágrima em lâmina, lâmina em música. É nesse passo que
marchamos. Como quem dança. Fingindo que a guerra que nos impusemos
(porque foi a que escolhemos) não passa de um grande baile e que o
inimigo, quiçá, possa vir a ser o par. É, soldado, é nesse metal que nos
fundimos, que fomos soldados. E te digo mais: o tempo passou, mas não
perdemos os brios. Seguimos com "sangue no olho", e acho mesmo que
estamos mais perigosos, porque aprendemos uma ou duas coisinhas sobre a
arte de sobreviver e inventar nova dança pra música de sempre.
Mas, companheiro, nenhum homem é de ferro (nem mesmo
o Homem de
Ferro). E, no fundo, no fundo, todos lutamos pra ter direito à mesma
paz que custa tão caro e é tão (mal) manipulada por poucos que dela não
gostam.
Assim que, de vez em quando, por artimanhas que aprendemos, conseguimos
seduzir essa paz que é esposa dos que a maltratam, e conseguimos que se
deite conosco. E temos quinze minutos de felicidade, porque naquele
curto
espaço de tempo pensamos saber como eles se sentem. Mas é aí que nos
enganamos. E duplamente! Primeiro, porque a paz não pertence a eles.
Segundo, porque eles não sabem a importância dela e, quando se deitam
com ela, é como se se deitassem sós, com seu ego, seu mau humor esuas
brochadas homéricas (porque eles não sabem fazer amor com a paz).
Por isso eu te peço perdão por esse momento de
fraqueza. Por ter esse sorriso paspalhão tingido meu rosto de
felicidade, fazendo-me crer que eu também mereço. Mas fique tranquilo,
um soldado é sempre um soldado, mesmo (e principalmente) em tempos de
paz. Fomos treinados pra dormir com um olho aberto. Estou apenas me
dando umas raras férias e embebedando-me do líquido dessa taça de
alegria pequeno-burguesa. Embebedo-me porque sei que lá, de onde viemos,
esse cálice é quase sagrado de tão profano, de tão proibido. E, se
pensarmos bem, ainda é tão pouco, não, companheiro? Você sabe do que
estou falando. De modos diferentes estamos passando por situações
semelhantes, só muda a língua.
Portanto, vim aqui te dizer que não, não tenho sido
desleixado com nossa luta, nem estou enfeitiçado. Os olhos da medusa não
nos cegam, ao contrário, alertam-nos. Assim, inebriado é que fico mais
sóbrio, mais atento. Apenas engano o adversário, fingindo-me de morto,
enquanto respiro e me recomponho. Saber retroceder é um belo método de
buscar novos avanços. Estou a par de nossa estratégia, de nossos papos;
da situação dos gays em Paris; dos versos que não mudei, porque sei que
você os vai mudar sem precisar de minha autorização; estou a par! O que
sucede nesses dias de paz é que fomos convocados a servir por um
período incerto em quartéis distantes, em fusos horários
diferentes, assim, quando nos tentamos passar informações, estamos em
momentos distintos do dia. Mas a guerra continua a mesma.
Desarmei-me um tiquinho, mas só pra lustrar essas
mesmas armas. Na hora em que não disparamos é porque estamos pondo um
pouco de óleo nas juntas, apertando um parafuso frouxo, trocando outro
que espanou, enfim, azeitando a arte da (nossa) guerra, que é muito diferente de
aceitar a derrota. A felicidade de hoje é uma droga, eu sei, mas é uma
droga conhecida. Já lemos muito sobre ela. E, embora não lhe sejamos
imunes, ela não nos derruba. Um bom soldado, ainda que trançando os pés,
marcha... como quem dança. E, já que "aqui nesse lugar todo mundo
dança" sem saber por quê, pelo menos nós somos privilegiados por ter
aprendido (sem que ninguém nos ensinasse) a escolher em qual dança
dançar... e como.
Amanhã, mais tardar depois de amanhã, de manhã
cedinho (conforme nossos relógios bem particulares), este soldado, embora bocejante, já
estará a postos, pronto pra despertar o galo. Porque um bom soldado sabe
que morre e a guerra continua. Somos todos peões nesse xadrez. Viu só?
Até minhas armas-palavras, que andavam esmorecidas, ante o menor toque
de despertar, já se mostraram preparadas. Acho que dependemos disso, de
que alguém nos grite ao pé do ouvido "em marcha, soldado!", visto que
nessa guerra um é o general do outro. Assim, meu general-irmão, cá estou
apresentando palavras-armas, com o cartucho cheio. E, você sabe, mesmo
que gastemos todas as balas, ainda teremos nossa própria carcaça pra explodir a
mesmice, homens-bomba que somos na guerra santa que inventamos, também conhecida como Música.
Ah, e não esqueci, não: parabéns, meu general!
Estimado Léo ...
ResponderExcluirme gustó muuucho esta carta que escribiste !!!!
Estoy seguro que a EC le va a encantar....
Curti muito as frases: "um soldado é sempre um soldado, mesmo (e principalmente) em tempos de paz", "a felicidade de hoje é uma droga, eu sei, mas é uma droga conhecida", e, "mesmo que gastemos todas as balas, ainda teremos nossa própria carcaça pra explodir a mesmice" ....
gracias por el texto...
saludosss
Soy yo el que agradece, Javier. Muchísimas gracias por tu visita y tu comentario.
ExcluirAbrazos,
Léo.