segunda-feira, 22 de julho de 2013

Crônicas Desclassificadas: 99) Lembranças incompletas

Estava dia desses trabalhando, revisando uns exercícios de física (revisão gramatical, expliquemos, pois nessa matéria sou uma nulidade), quando o vento do ar-condicionado mudou subitamente de rumo e enviou em minha direção uma kamikaze lufada de ar frio que balançou meus cabelos (sim, eu ainda os tenho; poucos, mas bravos!). Tal sopro maroto por um átimo deve ter posto em contato alguns fios desencapados de meu cérebro, pois imediatamente me veio à memória uma lembrança... que se foi no segundo seguinte. Fiquei intrigado com aquilo, e cheguei mesmo a perder alguns minutos tentando reacionar (acionar de novo) essa conexão, mas em vão. Por falar em reacionar, vejam que maravilha são as línguas: em espanhol há a palavrinha reaccionar, que significa reagir! Mas voltemos. Bateu-me uma tristeza, pois a tal da lembrança me parecia ser boa.

Isso já aconteceu com vocês? Imagino que sim, afinal não devo ser só eu no mundo quem tem lembranças náufragas. O chato é que ultimamente isso tem sido algo recorrente em mim. Sim, isso de me lembrar de algo e em seguida deslembrar. Será a idade? Antigamente, quando me lembrava de algo, parecia que eu estava no cinema, a lembrança vinha colorida, com historinha e tudo, às vezes até com trilha sonora. Lembro que um dia senti um cheiro de não sei o quê que me remeteu a um fato pitoresco de minha infância. Vivia eu numa rua em cujo lado contrário à casa em que eu morava havia um enorme terreno baldio quase que de ponta a ponta da dita rua. De repente, da noite pro dia, surgiu um barraco, depois outro, depois outros, até que o terreno baldio se favelizou. Minha mãe, temendo por mim, passou a fechadura no portão e disse algo como "De hoje em diante é daqui pra dentro", e pronto, acabou-se.

Mas essa não era a lembrança que eu queria contar, foi apenas seu prólogo. A lembrança era de uma peraltice que fiz. Foi esta: certo dia, cansado de viver trancafiado, ao notar que alguém esquecera o portão destrancado (morávamos numa casa alugada, e no mesmo quintal havia outras casas), não pensei duas vezes e ganhei a rua. Senti-me livre pela primeira vez na vida, parecia um jovem de 18 anos que foge de casa. Era isso o que eu queria, fugir. O bairro onde eu morava se chamava Americanópolis, e era vizinho do município de Diadema (ainda se chama, e ainda é). Lembro que caminhei pela avenida Engenheiro Armando de Arruda Pereira tranquilo, sem pressa, vendo carros e ônibus passarem por mim. Porém, quando cheguei à divisa com Diadema, senti subitamente medo (fronteiriço?) de uma liberdade com a qual eu não sabia o que fazer, e dei meia-volta.

Quando estava chegando perto de casa, reparei em minha mãe, descabelada, gritando por meu nome a plenos pulmões. Que pulmões ela tinha! Nem precisava de alto-falante. Naquele momento, o medo que sentira minutos atrás ficou pequeno perto do medo que senti dela; então, tive ainda o sangue frio de me esconder atrás de um carro que estava estacionado na rua. De repente, a brincadeira cansou, fiquei com pena de minha mãe e com vontade de voltar pra casa. Saí então de detrás do carro com um sorriso angelical sedutor e corri em sua direção. Qual o quê! Ela não quis nem saber de meu sorriso colgate, puxou-me pela orelha e me botou pra dentro enquanto me estapeava (naquela época isso era normal). Moral da história: me pôs de castigo durante não sei quanto tempo com uma perna amarrada ao pé da mesa!

Lembrança é um negócio dos mais interessantes. Saibam vocês que tenho um bloqueio, uma espécie de amnésia. Não me lembro de absolutamente nada do que aconteceu comigo durante a infância. Às vezes, acho que sou um alienígena que roubou o corpo daquela inocente criatura. É verdade! Acho que começo a me lembrar de algo a partir dos 13 pra 14 anos (que deve ser a época em que fiz contato – lembram-se de Invasores de Corpos?). Contudo, há fatos, como o que recordei acima, que, de tanto me contarem, absorvi, mesmo sem lembrar. Por isso, tive essa lembrança acima quase como uma lembrança inventada, ou melhor, recriada. Lembrei como deve ter sido, não como foi. Com algumas dessas lembranças chego a sonhar, como foi o caso de uma praticamente traumática, que talvez explique minha relação sempre conturbada com o sexo forte (ou seja, o feminino).

Devia ter eu quatro ou cinco anos naquela ocasião. Minha mãe trabalhava em casa costurando pra fora. Então, quase todos os dias vinham clientes suas trazer ou pegar encomendas. Naquele dia, apareceu uma senhora com sua filha, uma menina linda, que devia ter quase minha idade. Essa deve ter sido minha primeira paixão, mas, como então eu ainda não sabia o significado da palavra timidez (por que eu tinha que descobrir?), em poucos minutos já estávamos ambos brincando animadamente com o que estivesse à mão. Fazia calor. Ou devia fazer, porque a doce criaturinha subiu no tanque onde minha mãe lavava nossas roupas (na época, máquina de lavar roupa era artigo de luxo) e, na falta de piscina, ligou a torneira. Em seguida, me chamou pra desfrutar desse éden possível. Não pensei duas vezes. Meti um tarzã na cachola e subi. Foi a última coisa da qual (não) me lembro.

Contaram-me depois: o tanque não estava colado à parede, apenas encaixado. Moral da história, a menininha voou como a Sininho de Peter Pan, e eu levei com o peso do tanque nas fuças. Precisei de vários pontos pra consertar meu rosto, e algumas cicatrizes ainda existem até hoje e não me deixam esquecê-las, pois quase sempre quando faço a barba elas se manifestam num pequeno filete de sangue. É, meus caros, andei lendo Rubem Braga, considerado o maior cronista brasileiro e famoso por saber "encher linguiça", e acho que fui tocado por essa sensibilidade. Escrevi o primeiro parágrafo sem saber no que ia dar, e eis-me aqui, sete parágrafos depois. Pra fechar, enfatizo que, mesmo quando as lembranças vêm assim, econômicas, são sempre bem-vindas. Às vezes, ativadas por um cheiro, uma canção, uma palavra, um marcador de página dentro de um livro... E assim, como minhas lembranças incompletas, abandono incompleta esta crônica, na falta de um ponto final..
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4 comentários:

  1. Léo, é assim mesmo! Várias situaçoes do presente rementem a casos passados. Sou campeao na matéria. Porém, (fato confirmado) há acontecimentos, dos tempos de criança, que a mente deleta e outros que nos seguem eternamente.
    Como sempre, um deleite as tuas crônicas.
    Abraçao

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    1. Valeu, Pedrão! Isso dá matéria pra muita música, hem? Falando nisso, tô no aguardo "daquelas".

      Abração,
      Léo.

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  2. eu sou todo lembranças, mas tudo na vida é lembrar e esquecer, lembrar e esquecer. Veleiro

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    1. Velerim:

      Faltou o verbo principal, que é o que possibilita os outros dois: viver!

      Abração,
      Léo.

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