quinta-feira, 15 de julho de 2010

Carta à maioria ou Prosa em linha torta

Escrevi esta carta há pouco mais de um ano, mas acho que, infelizmente, durante um bom tempo ela vai continuar sendo atual. Pelo menos gosto dela. É meio pessoana, mas em prosa:

Carta à Maioria ou Prosa em Linha Torta
Por
Léo Nogueira

Venho por esta pedir desculpas à maioria. Desculpas por meu egoísmo, meu ensimesmamento (ou seria meu "enmimesmamento?), minha ranzinzice, meu olho no umbigo. Quero pedir perdão a todos que pertençam à maioria a quem eu tenha porventura ofendido e àqueles a quem esquecerei de citar.


Peço desculpas de joelhos a todos aqueles que berram em todos os lugares públicos com seus aparelhos celulares. Oras! Se são lugares públicos, eles têm mais é que berrar mesmo, afinal, o que é público pode até ser privada, mas não é privado. Perdão, falantes… e alto-falantes! Eu, que sempre me irritei com suas vozes reverberando a falta de assunto, justamente hoje (HOJE!) me peguei pensando: será que não sou eu que os irrito com meu silêncio? Viro à esquerda, tem um falando ao celular, viro à direita, tem outro, à frente, atrás, embaixo, acima, estão todos falando ao celular, menos eu! Afinal, quem eu penso que sou pra não falar também ao celular? Mais de uma vez, tentando compenetrar-me em algum livro em assentos de coletivos, percebi o olhar de esguelha de algum falante olhando-me como se eu fosse um ET. Como uma espécie de "psiu" às avessas! E, juntando os fatos, percebi, roxo de vergonha, que EU que atrapalho!

Peço perdão a todos os motoristas que cruzam as vias (públicas) caridosamente compartilhando seu gosto musical com os demais, sejam motoristas, passageiros, ou mesmo pedestres, nesses dias de tanto trânsito. E alguns ainda fazem a gentileza de cantar em cima da gravação! Com suas potentes caixas de som fazendo tremer a Terra! Oh, bons samaritanos! Agradeço-lhes por mostrarem com isso que estamos vivos! A vocês e aos vizinhos, com seus cães cantores, seus papagaios poliglotas, suas TVs que nos comunicam alto e bom som mais um gol brasileiro, meu povo! E eu, que faço? Quando muito, alardeio em voz baixa minhas verdades! Ainda bem que sou minoria, ou o mundo seria um perfeito cemitério!

Àqueles bombados, de corpos exuberantes, cabelos cuidadosamente desgrenhados, barbas milimetricamente aparadas, bípedes de másculos biceps, oh, meus irmãos! Perdão! O que posso dizer em meu favor pra que não me castiguem pelo ato de botar o bloco do eu, que é meu corpo, na rua? Esse corpo fora de esquadro, esse abominável abdômen, essa vista astigmática escondida atrás de tortos aros, esses cabelos ralos escondendo ideias conspiratórias concebidas por uma massa muito mais que cinzenta, diria mesmo gris. Oh, como ouso? Eu, que não frequento academia, no máximo incomodo ácaros em sebos. Quiçá nem o inferno me aceite, já que os garçons o fazem com comiseração, sem entender porque este miserável consegue tomar cervejas em bares lendo o jornal. E nem é o caderno de esportes!

Por falar em garçons, peço-lhes desculpas pelas vezes que disse "al dente" pra fazê-los de idiotas e pelas outras em que disse "au dênti", por achá-los estúpidos. E pelo milhão de vezes que pedi que abaixassem o volume da televisão. Ser monstruoso, não vês que todos saem de casa pra ver TV em lugares públicos por puro senso de coletividade, da mesma forma que nossos pais iam às igrejas? Por que não nasceste surdo se não estás preparado pra ouvir o que as TVs – filósofos modernos – têm a dizer? Por isso andas pelas ruas como um paspalho, fora de moda. Notaste que és o único em quilômetros que não expõe as cuecas? E ainda te ofendes quando lindas jovens passeiam na garoa com suas carnes sobrando pelas laterais de calças mal-ajambradas, pulando dentro delas pra nelas se fazerem caber! Mal-ajambrado és tu, patife! Que usas meias que ainda vão até os joelhos! Queres falar de moda?

Lástima! Não vejo o Big Brother, assim não tenho assunto nas mesas de bares, nos horários de almoço ao lado de companheiros de escritório, nas filas de bancos! De que mundo sou, afinal? Compondo em língua morta, não tirando os pés do chão… Oh, poço de preconceitos! Reparas nas mazelas humanas e não vês que és tu quem está sobrando nas festas! Enquanto todos riem sem motivo, ou pelo simples motivo de estarem vivos, tu permaneces taciturno, por mil motivos, ostentando motivos para os quais não tens a solução. Ostentas motivos como outros ostentam pulseiras, correntes, piercings. Tu não tens coragem de profanar teu corpo com perfurações ou mesmo tatuagens, mas profanas tua alma. Se é que tens alma, besta! Tu, que ainda choras só… Tu, que depois que leste Kafka, literatura inútil, te vês perseguido em qualquer estabelecimento, mesmo na cozinha. Com a diferença de que, se não és personagem principal, ao menos és culpado deste processo!

Perdão! Perdão! Perdão! Três vezes! Àqueles que querem entrar nos vagões antes que eu saia e que, quando estão dentro, querem sair antes que eu entre. Vocês têm razão! Vocês têm que entrar e sair primeiro, pelo simples motivo de que são a maioria! E a maioria pode tudo! Se eu fizesse parte da maioria não precisaria me fingir de educado, simplesmente entraria e sairia a meu bel-prazer, sem maiores crises de consciência. E, na escada rolante, ainda pararia no meio. Afinal, quem quer andar na escada rolante? A minoria. E eu, que sou minoria entre a minoria.

Irmãos, meus irmãos… Animem-se! A maioria, que durante milênios foi minoria, agora está prestes a ser não apenas maioria (pois isso já o é), mas maioria absoluta! Esmagadora! A minoria extingue-se dia a dia. Os reclamões, categoria à qual pertenço, os que acham desculpas pra não subirem de cargo. Enquanto isso, a maioria está pisando em cabeças pra subir, ao mesmo tempo que as cabeças pisadas sempre encontram cabeças outras a serem, também por sua vez, pisadas, e assim sucessivamente, até que sobrem apenas cabeças de animais, estes sim irracionais, cujas cabeças merecem ser pisadas. E não porque são cruéis, apenas porque é assim que é. E eu, que não piso senão a minha própria cabeça, subo pra baixo. Talvez não pise minha cabeça, e sim cabeceie meus pés, o que dá no mesmo. Como no verso de uma canção (momento de autocitação) que diz que "pra quem está no subsolo, o céu é chão".

Já dizia a Palavra que os bem-aventurados herdariam a Terra. Está por chegar o dia, o juízo final, o sinal dos tempos, o após-calypso. Nesse dia todo o silêncio será extinto, e, com ele, a minoria. Nesse dia um novo decreto fará saber (aos que ainda souberem ler), que será Carnaval todos os dias, que o direito de um continuará pra além das fronteiras do direito do outro, assim sendo, não haverá mais fronteiras! Ou direitos, já que todos passearão certos por vias tortas. Assim será o paraíso.

Infelizmente, nesse dia, eu, que pertenço à minoria, não estarei aqui pra dar vivas.


São Paulo, 13 de fevereiro de 2009.



***

8 comentários:

  1. Léo,

    Demorei, mas já estou por aqui! E estarei sempre.

    Lendo a sua carta só pude pensar "Como não fui eu que fiz?!". Você é meu Paul e meu John...

    Beijão

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  2. Oi, queridona! Ufa! Você salvou meu texto! Postei meia dúzia de textinhos, a maioria tendo uma certa relação com os leitores, mas só me preparando pra postar este, que acho dos meus mais verdadeiros e indignados (pra não dizer indigitados)... E eis que ninguém comentou? Achei que tava todo mundo falando ao celular, ouvindo um som no último volume no carro, entrando no metrô antes que outros saíssem, malhando etc. Enfim, me senti mais minoria ainda. Até seu comentário chegar.

    E já que você citou esta maravilhosa dupla, termino este comentário com uma bela mensagem:

    "Não precisa medo não
    Não precisa da timidez
    Todo dia é dia de viver"

    Beijos,
    Léo.

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  3. ahahaah
    "Talvez não pise minha cabeça, e sim cabeceie meus pés, o que dá no mesmo. Como no verso de uma canção (momento de autocitação) que diz que "pra quem está no subsolo, o céu é chão".

    Este(a) sou eu. Viva! Disse tudo que eu queria dizer.

    :))

    Ah Leo!! :( Eu leio....snif Problema é ir aqui ali e repetir la saca:))

    bjos

    Ei mas sei o que sente. Estes dias eu contei um episodio de minha insignificante vida, que aliás, me é bem caro, e até explica minha sina de poeta extraviada e não houve nem comentário nem nada....É frustrante. Sei bem. POr isso a gente desanima sei lá

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  4. Anja, nós, que lidamos com a palavra, quer dizer, lidamos com sentimentos, a palavra é mera ferramenta. Mas nós, que temos essa característica, por vezes caímos na ilusão de que o que nos toca tão profundamente vai encontrar igual proporção no outro, e nem sempre isso se revela verdadeiro. Por isso que ultimamente tenho sido mais egoísta, nesse sentido, e procurado escrever o que simplesmente me é impossível evitar. Questão de necessidade, como comer, respirar etc.
    Mas vamos em frente! Desanime, não, que a fila pro bonde dos desanimados está a perder de vista! Vamos pegar o bonde que está mais vazio. Hahaha!

    Beijos (e obrigado pela visita),
    Léo.

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  5. Não precisa ter medo nem é egoísta, nem quer apanhar o bonde primeiro , apenas olhando para dentro de si diz : Que raio que ando eu aqui a fazer se ninguém me conhece, se ninguém, a maioria, nem lê o meus textos que umas vezes dão um trabalhão a fazer, outras saem do amago da minha deceção e num segundo escrevo o meu sentimento. que ninguém lê mesmo, e eu a pensar que dessa vez seria a obra prima. Das duas uma ou todo o mundo anda cego preguiçoso, indiferente! Ou so olha para seu botão da camiseta que está quase a cair e é preciso segurá-lo porque se cai terá de mudar todos os botões e é um drama o grande drama da maioria dos indiferentes dos absortos a pensar em si próprios esses sim os egoístas os donos do bocado. Você falou e disse .Amei

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    1. Oi, Té!

      Fico feliz que tenha gostado. É, vez em quando passam por minha cabeça esses pensamentos, por isso escrevi que esse texto é atual, pois ele já antevia mágoas posteriores, visto que o escrevi um ano antes de criar o blogue. Mas essas coisas são cíclicas. Ainda bem que amanhece um dia de sol e a gente começa a acreditar de novo. Assim é a vida, no dia em que desistirmos seremos não mais que mortos-vivos.

      Abração,
      Léo.

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  6. voce é um cara que mantem a cabeça em cima do pescoço ,parabens

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    1. Hahaha! Valeu, Tim! E espero mantê-la até o dia de abandonar esse edifício caindo aos pedaços chamado corpo.

      Abração,
      Léo.

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