terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Trinca de Ouro: 5) Ayrton Mugnaini Jr., Dimi Zumquê e Fernando Cavallieri

1) CARA DE PALCO

Como frisei no texto sobre Dimi Zumquê, em seu mais recente trabalho ele gravou nossa parceria Cara de Palco, cuja letra eu compus pensando nele e em sua personalidade artística. Essa é uma letra bem antiga, que com o passar dos anos teve uns versos que foram sendo modificados por mim, por não concordar mais com eles. Um deles era "sei votar pra presidente". Este é um verso por demais pretensioso, que, no mais, destoava dos outros. A lírica e a picardia dos demais não se aplicavam a ele, de modo que o troquei.

Mas isso depois que Dimi me avisou que a iria gravar, pois há muitas letras que fazemos que ficam lá, meio perdidas, um tanto enferrujadas, esperando a hora de que alguém as grave pra que pensemos em melhorá-las um pouco. Há, inclusive, casos em que eu, particularmente falando, mesmo depois de ver uma letra minha gravada, tenho ímpetos de alterar um ou outro verso. Principalmente quando se tratam de letras mais antigas. No primeiro disco de Kana, Do Japão ao Ceará, quando o ouço tenho vontade de mudar quase todas as letras. Mas um disco é um retrato de uma época, com seus defeitos e qualidades. Claro que se alguma daquelas canções for regravada nada me impedirá de pôr em prática tal desejo.

Mas, voltando a Dimi e à Cara de Palco, apesar de ser esta uma canção antiga, gostei do arranjo, que lhe deu certo frescor. Além do mais, se pararmos pra pensar, num âmbito mais macro, podemos dizer que uma canção só cresce de verdade quando é gravada, pois é aí que ela terá a oportunidade de chegar a um número maior de ouvintes. Se bem que esta canção chegou a ser defendida por Dimi em alguns festivais, mas sem maiores repercussões. Acho que o azarado em festival sou eu mesmo... Ou talvez minhas letras não condigam com a realidade festivaleira. Espero que vocês curtam mais do que os jurados dos festivais em questão.

CARA DE PALCO

Sou batuqueiro, botequeiro, bituqueiro, sou
Brasileiro, forrozeiro, pagodeiro bom
Eu sei tirar um som
Eu sei tirar um som



Sou do terreiro, do caminho,
Do morro, do pelourinho,
Eu sou de rosa e de espinho,
Da porrada, do carinho,
Sou da cachaça, sou do vinho

Da madrugada, do partido,
Do santo, do proibido,
Eu não sou anjo nem bandido,
Vejo até com olho de vidro,
Vou atraente e atrevido, eu vou...

Sou fevereiro, de janeiro a janeiro, sou
Maloqueiro, mandingueiro, partideiro bom
Eu sei tirar um som
Eu sei tirar um som

Sou da quizomba, do batente,
Do samba, de quem sente
Do culpado e do inocente,
Vou tranquilo, sigo urgente
Oceano, afluente

Do chegado, do distante,
De Sampa, do retirante,
Eu sou da cheia, da minguante,
Da feia, da deslumbrante,
Don Juan das estreantes

Eu sou das puras e das putas, sou das rimas, vou
Nas maduras, nas meninas e nas primas, com...
Eu sei tirar um som
Eu sei tirar um som

***

2) SAMBA FUNERÁRIO

Há pouco menos de um ano postei este samba e seu referente texto na primeira edição do Trinca de Copas. Recentemente Ayrton o gravou em seu novo disco, Lados-E. Portanto, à parte a imensa alegria que sempre é ver uma canção gravada, em vez de tecer-lhe palavras outras, achei por bem colar o texto original aqui, pois nele fiz um bom resumo do samba e da parceria. Futuramente tratarei mais de Ayrton e de seu interessantíssimo disco. Abaixo segue, pois, o texto, que é de 24 de fevereiro de 2011:

Acho que quis ser parceiro de Ayrton Mugnaini desde sempre. O problema é que Ayrton tem no humor sua maior fonte de inspiração. Já eu tenho por hábito tematizar a dor. Claro que nossos universos não se resumem a isso, além do mais, acho mesmo que o humor é uma espécie de máscara da dor. E o cômico é que meus amigos me acham um cara muito engraçado, mas em geral isso não se traduz em minhas letras. Talvez a dor seja a máscara de meu humor...

Bem, há alguns milhões de anos achei que tinha feito umas três ou quatro letras engraçadas e mandei-as pra Ayrton. No final das contas as letras não eram tão engraçadas assim (nem tão boas), e a parceria continuou ali, à espera. Finalmente acabamos parceiros meio que por acaso, por intermédio de Sonekka, que mostrou uma parceria dele comigo a Ayrton, que mexeu aqui e acolá, suprimiu um isso, acrescentou um aquilo, e a canção acabou virando o hino do Tonq (Tosqueira ou Não Queira), grupo do qual ambos fazem parte.

Mas ainda não era isso. Não podíamos ser considerados "oficialmente" parceiros. Ou melhor, podíamos ser considerados oficialmente, mas não "na vera". Foi então que, depois de eu ter me frustrado com o resultado da primeira investida, foi a vez de Ayrton dar o passo. Mandou-me um e-mail dizendo que tinha algumas melodias vagas que careciam de letras como inquilinos e perguntou-me se eu não queria ajudá-las. Topei na hora, até porque sempre preferi letrar melodias. Só que ficou nisso, ele acabou nunca me enviando as tais melodias, mas aí a coragem já havia voltado, e foi minha vez de dar novo passo.

Como a maioria de meus parceiros me pede letra, sou obrigado a compor letras antes das respectivas melodias. Por conta disso, bolei alguns métodos que democratizo aqui. Os dois mais certeiros são: 1) Pego uma melodia de alguma canção de que gosto e faço-lhe uma nova letra. Em seguida, sem dizer nada ao parceiro escolhido, envio-lhe a letra que fiz pra canção tal, e este, sem nada saber, põe-lhe outra melodia. Às vezes me divirto comparando as duas. 2) Vez em quando eu mesmo, no intuito de metrificar e dar ritmo aos versos, acabo cantarolando alguma melodia enquanto vou inventando versos. De vez em nunca sai uma boa melodia que acabo aproveitando, mas, na maioria das vezes, descarto-a e mando a letra resultante pro parceiro escolhido.

Deu-se assim com Samba Funerário. Tinha o tema na cabeça, mas, pra desenvolvê-lo, acabei cantarolando um sambinha mequetrefe que me ajudou a consolidar as estrofes. E ele ficou ali, sem que eu soubesse pra quem o iria mandar. Explico: Quando faço uma letra, na maioria das vezes penso já no parceiro enquanto vou fazendo. Mas há oportunidades em que não me vem ninguém à mente, e vou simplesmente compondo o que sai da cachola. Samba Funerário foi desse grupo. Daí calhou que, relendo-o, notei que ali havia dor e humor, então veio meu "eureca"! Naquela letra havia um pouco de Ayrton e um pouco de Léo! Humor + dor. Resultado: Mandei-lhe a letra num dia e dois dias depois ele me mandou a canção gravada. E o resultado está aqui:

SAMBA FUNERÁRIO
Ayrton Mugnaini Jr. - Léo Nogueira

Quando alguém morre
Os anjos dizem amém
Os anjos dizem amém
E os demônios também

A família chora
O defunto vira santo
Dizem: não era hora
Dizem: não era pra tanto
Se a família é pobre
E caixão for pouco demais
Aí a terra cobre
O chão aceita um a mais

Quando alguém morre...

Mas o tempo passa
E todo mundo se esquece
Se um lembra, acha graça
Outro vai fazendo prece
Na fila tem mais gente
Esperando pra nascer
A vida segue em frente
Sina é viver e morrer

Ninguém quer morrer
Nem eu nem você
Ninguém quer morrer
Nem vovó, nem neném
Ninguém quer morrer
Mas se ninguém morrer
Aqui não vai mais ter
Lugar pra ninguém

Não faço drama
Todo fruto cai do galho
E ainda “fica a fama,
E a fama dá trabalho”
Se São Pedro me chamar
Vou ter que sair da praça
Quem me ama vai chorar
E invejoso, rir sem graça

Quando alguém morre
Os anjos dizem amém
Os anjos dizem amém
E os demônios também

***

3) SATÉLITE

Fernando Cavallieri é um amigo com quem gosto de prosear, porque é um dos caras mais inteligentes que conheço; com quem gosto de beber, porque, como eu, é chegado a derivados de uvas, canas e cevadas; com quem gosto de almoçar (ou jantar), sobretudo quando o cozinheiro é ele, pois entende muitíssimo dessa arte na qual eu sou semianalfabeto; e com quem eu gosto de compor...

Tá, não mintamos. Quando o assunto é compor, o buraco é mais embaixo. Neste mesmo blog já me referi mais de uma vez à parceria com 
Cava, e sempre (ou quase sempre) com certa mágoa, pra não dizer rancor, que é palavra mais pesada. E tudo porque o moço de buarqueanos olhos faz parceria com Deus e o mundo com a maior facilidade, mas, quando tem pela frente letras minhas, trava. E sempre diz que as melhores letras mando pra outros!

Ao passo que eu fico puto porque sempre mando pra ele as que acho que são as mais-mais, e quase nunca viram canções. Por conta disso, há algum tempo resolvi só lhe enviar aquelas que são inegavelmente mortais. Só que nem isso é garantia de parceria, pois o que pra mim pode parecer mortal periga causar sono nele. Vai entender... É que o 
Cava é meio feminino no ato (de compor, deixemos claro) e no trato, poderia mesmo dizer que é um fulano de olhos oblíquos.

Mas eis que compus a letra que batizei Satélite, e quase com petulância lha enviei, como quem diz: "Quero ver se esse puto não musica esta". E foi batata! Uma linda canção, mas que mesmo em sua harmonia e em sua linha melódica não esconde o quão difícil é pra nós a parceria. Sim, porque ele tentou fazer uma melodia que "chegasse junto" na letra de igual pra igual, então elaborou-a com toda a experiência que adquiriu. Repito, ficou linda, mas quando ouço outras canções suas em parceria percebo que há nelas menos... sofrimento?

A impressão que tenho mesmo é que fiz essa letra pensando em nossa conflituosa relação de parceria. Creio que serei entendido. Ei-la:


SATÉLITE

Eu tempero as palavras que digo

Pra caberem no seu paladar

As canções que nasceram comigo

Eu perfumo, pra te embriagar

Meu amor mora em tudo o que faço
Meu olhar te enxerga sem ver
Sou satélite solto no espaço
Gravitando ao redor de você

Mas, em tudo o que faço, eu falho
No desejo de te alcançar
Eu desbravo a floresta do atalho
E é o caminho mais longo que há

Se ao menos você me odiasse
Ou tivesse por mim compaixão
Pra seus olhos eu não tenho face
Sou um verme na escuridão

Sou Quasímodo sem Esmeralda
Sou Quixote sem livros pra ler
Agarrando o vazio pela cauda
Nem sofrendo te causo prazer

Pois, em tudo o que faço, eu falho
No desejo de te alcançar
Eu desbravo a floresta do atalho
E é o caminho mais longo que há

***


2 comentários:

  1. Meu caríssimo Amigo e Parceiro, Léo Nogueira, apesar da sua mágoa e rancor, saiba que é grande o privilégio de ser teu parceiro, ainda que não na quantidade que lhe e me apeteceria. Mas ouso afirmar que a qualidade compensa...
    Além disso, há que se lembrar que TODAS as nossas parcerias estão registradas em meus CDs.
    O que não é pouco...
    No mais, meus buarqueanos olhos oblíquos muito se deleitam em flanar demoradamente pelos teus inspirados textos e tuas letras magistrais.
    Evoéééé!!!!

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    1. Meu não menos caríssimo amigo e parceiro Cavallieri, você sabe que eu tenho exacerbado em mim esse lado mesquinho e infantil, mas mesmo ele não é capaz de macular a admiração e o respeito que eu tenho por sua pessoa.

      Sinta-se abraçado,
      Léo.

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