sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 108) Nosso piano interior

Acho que gosto de literatura japonesa desde que me entendo por gente (ou seja, por leitor). Um dia me caiu em mãos um livro de Yukio Mishima (O Templo do Pavilhão Dourado, se não me engano), e pronto! Lá estava eu enredado pra todo o sempre nas linhas da literatura da Terra do Sol Nascente! De lá pra cá perdi a conta de quantos livros e autores já saltaram a janela de meus olhos adentro. Anos depois chegou a vez de eu cair de amores pelo cinema japonês, mais ou menos quando tive idade e sensibilidade suficientes pra perceber que havia um universo cinematográfico vasto e riquíssimo fora dos portões de Hollywood.

Em se tratando de arte japonesa, o que até hoje não entendo é que os artistas japoneses passam, por intermédio de sua arte, mensagens completamente distintas do estilo de vida de seus concidadãos. No entanto, pensando bem, acho que isso não é privilégio do Japão. Os artistas em geral são contestadores de sua própria sociedade, enxergam defeitos no que outros consideram regra. Por essas e outras a arte é tão importante numa sociedade. E por isso lamento que ainda hoje, em pleno século XXI, ainda existam países (como Cuba e China, por exemplo) que censuram seus artistas, prestando assim um desserviço a seu povo (mais ou menos como a questão das biografias no Brasil).

Pois bem, o prefácio acima foi apenas pra dar tempo de enxugar (pela enésima vez) meus olhos. Como já disse uma vez numa canção (O Mar em Mim, em parceria com mestre Tavito), "eu trago o mar em mim/ no pranto salgado a me derramar". Acho que poucos versos que escrevi foram tão verdadeiros quanto estes. Eu tenho REALMENTE o mar nos olhos. E é uma fonte que nunca seca, graças a Deus! Ainda hoje me pego surpreso ao me surpreender com a arte, a ponto de quase me esvair nessa água salgada do mar de mim. Só que este é um mar que a cada vez rouba as águas de fontes distintas. E a fonte dessa vez foi um filme japonês de animação chamado Piano no Mori (ピアノの森), de Masayuki Kojima.

Agradeço diariamente em minhas orações ao deus das coincidências, que costuma me mimar com presentes que jamais esperei. Que são, aliás, os melhores. E este se deu assim: estou viciado em assistir a filmes em espanhol no youtube, pra manter vivo o contato com a língua de Cervantes. Portanto, estava eu pesquisando por lá, quando me deparei com o sugestivo título El piano del bosque. Só que, quando percebi, não se tratava de um filme latino, mas sim de uma animação japonesa com legendas em espanhol. Não titubeei. Já que já estava lá mesmo, e como (como frisei acima) gosto de cinema japonês, deixei-me levar por dois prazeres embutidos num só. Contudo, confesso que não esperava tanto. E é provável que você, leitor que lê estas linhas, acabe se frustrando por esperar demais, após ver o filme. E sabe por quê?

Porque você talvez seja um vencedor, ou alguém que está lutando pra "vencer na vida". E vencer significa quase sempre derrotar alguém; se dar bem, no mundo capitalista, quer dizer atropelar rivais, jogar o jogo da competitividade. E, mais que isso, aceitar as regras de tal jogo. Só que você, campeão, não percebe que, aceitando tacitamente tais regras, sem contestá-las, acaba se tornando apenas mais um entre os iguais! E o que esse filme deixa transparecer é justamente que devemos preservar (e incentivar) nosso eu, nossa originalidade, o que nos destaca dos demais, mesmo quando fazemos a mesma coisa que os outros fazem.

Eu, na condição de compositor, sei exatamente o que significa isso, tentar cada vez mais me atirar de cabeça (e coração) dentro do eu, pra extrair de lá a poesia que eu, e apenas eu, poderia criar. E isso independente de vitórias ou derrotas. Ao assistir a esse filme não pude deixar de me lembrar de uma canção minha em parceria com Adolar Marin, chamada Baião de Um (já ímpar a partir do nome), que considero, deixando de lado a máscara da falsa humildade, uma canção maravilhosa (ouça-a aqui), mas que, no entanto, sempre foi pouco compreendida nos festivais dos quais participou. Acredito que justamente por sua originalidade. O crítico teme o novo, pois não pode usar ante ele a muleta de sua experiência, que só olha pra trás.

Mas deixemos as elucubrações de lado, pois o ponto final urge. Pra terminar, há uma frase no filme que me chamou particularmente a atenção: um professor de piano diz em determinado momento que talvez o Japão seja pequeno demais pra um aluno seu. E escolher ser original é também isso: arcar com a possibilidade de ser incompreendido dentro do âmbito do esperado. Inclusive vinha querendo escrever algo pra minha amiga Lúcia Santos, mas acho que este texto já resume o que eu queria dizer. Lúcia, aproveitemos a metáfora do filme e transportemo-lo a nossos respectivos ofícios: de acordo com o que entendi dele, a melhor maneira de tocar uma música ao piano é com nosso "piano interior" (e isso eu sei que você já sabe). O êxtase atingido quando tocamos "nosso" piano é muito maior (embora mais árduo) que o de quando experimentamos o sucesso comezinho do contentamento com os aplausos burocráticos após termos tocado teclados alheios.

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Veja o filme na íntegra (legendas em espanhol):


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2 comentários:

  1. quero assistir à esse fillme! me identifico profundamente com a filosofia japonesa. Pelo que vc disse, ele vai de encontro com algo que canso de dizer todos os dias à todas as pessoas, todos esses anos. Gente boa, criativa, talentosa, brilhante, genial, seja lá o que for, tem em todo o lugar, agora, só você será você, ninguém mais! É isso que faz a diferença! beijinhos Magnânimo!

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    1. Inevitável Daisoca, cê tá coberta de razão.

      Beijos,
      Léo.

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