quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Trinca de Ouro: 7) Adolar Marin Trio, Drê (+ Tavito) e Lucia Helena Corrêa (+ Élio Camalle)

1) ESSE

Existem canções que foram feitas pra determinado/a intérprete. Daí que, até que este apareça e as descubra, continuam aquelas ali, perdidas, à espera da voz que finalmente as irá cobrir de sons e sentidos (sentimentos)... e, assim, dar-lhes-á vida. Foi o que aconteceu com a Esse em questão. Certa vez tivemos um contato excelente pra encurtar caminhos ao envio de canções a Nana Caymmi, que estava selecionando repertório pra seu disco novo. Tendo tal oportunidade em mente, afiei meu eu lírico feminino e, em menos de dois quartos de hora já estava com a letra de Esse pronta. Liguei pra meu mano Élio Camalle e por telefone mesmo recitei-lha, enquanto ele a copiava do outro lado da linha.

Daí que não passou meia hora e foi sua vez de me ligar, já cantarolando a melodia da canção. Confesso que não me foi possível ouvi-la sem deixar cair, às fartas, grossas lágrimas de alegria e realização. Pra resumir, embora a canção tenha chegado até Nana, esta jamais a gravou, pelos motivos que são dela e de mais ninguém. O fato é que a canção ficou órfã. Camalle chegou a cantá-la uma vez num bar onde se apresentava e, pra fazer graça, disse ao público que Nana a estava gravando. Após a execução, os aplausos foram ensurdecedores. A canção é realmente bonita, mas tenho cá comigo que se o nome da dita cantora não tivesse vindo à baila os aplausos não teriam sido tão condescendentes. Há aplausos e aplausos...

Anos depois, no Caiubi, minha querida Lucia Helena Correa me contou que estava selecionando repertório pra seu primeiro disco. Enviei-lhe, pois, três ou quatro canções. Entre elas estava Esse. Passado algum tempo, estávamos eu e Camalle na saudosa rua Caiubi, 420 (primeiro endereço do Caiubi), quando Lucia Helena foi chamada ao palco e, sem sobreaviso, acompanhada ao violão por Bráu Mendonça, começou a tascar à queima-roupa os primeiros versos de nossa canção. Arrepiados até a medula, olhamo-nos sem conseguir conter um PQP(!).

Há pouco mais de um mês recebi o tão aguardado CD Febril, cujo título não poderia ter sido mais acertado. Lucia, sem medo de ser feliz, arvorando-se em porta-voz de tantos compositores "sem voz", presenteou-nos com um CD com nada menos que 19 belas canções, todas de compositores, digamos, alternativos. Sem falar no time de músicos e arranjadores, que contou com o supracitado Bráu, além de Tato Fischer Ayrton Mugnaini Jr. entre outras feras. E as canções foram tantas, e tão boas, que restou a nossa Esse um honrado 18º posto (ainda bem que ela não se contentou com 12...). Não importa, a ordem dos petardos não altera o estrago que fazem no (peito-)alvo. Mas agora me calo, porque sua voz canta melhor do que minhas palavras contam.


ESSE

Que homem é esse
Que toma um drinque
E manda que eu brinque
Com a sua libido
Não é meu marido,
Mas é meu senhor
Rasgou-me o vestido,
O medo e o pudor

Que homem é esse?
Não pede licença
Não sei o que pensa
Não penso em mais nada
Já é madrugada,
Nem sei bem direito
Como a sua estrada
Parou no meu peito

Que homem é esse
Que me escravizou a vida?
Sangrou mais e mais minhas feridas
Seu silêncio me tortura
É um mal que não tem cura
Faz-me agir qual meretriz
Me levando à loucura
E me fazendo feliz

***

2) O MAR EM MIM

Já contei antes como nasceu esta canção (aqui), mas conto de novo, resumidamente, pra aproveitar o advento de sua gravação. Há uma canção de Gilberto Gil e Caetano Veloso, chamada Beira-Mar, que me cala fundo na alma, sobretudo por causa dos versos que dizem: "Na terra em que o mar não bate/ não bate o meu coração". Pra mim, que sou um nordestino do (seco) sertão que veio parar numa São Paulo que, apesar da garoa, igualmente não tem mar, ouvir essa canção sempre foi doloroso. Não que ela me desgostasse, ao contrário, me encantava! ... de uma forma talvez masoquista, mas encantava. Contudo, durante anos pensei em compor algo que, mais do que lhe servir de resposta, mantivesse com ela um diálogo.

O empurrão que faltava quem me deu foi meu camarada Adolar Marin, que, certa vez, durante um papo, disse-me que tinha lido num jornal algum crítico criticar (naturalmente, já que este é o trabalho deles) os compositores paulistanos por falarem sempre de mar em suas canções. Segundo o crítico, já que em São Paulo não há mar, deveriam aqueles tratar de assuntos que lhes fossem mais próximos. Isso bastou pra que eu juntasse as pontas entre a canção dos baianos e a crítica do crítico e me desabalasse a escrevinhar versos salgados do mar de mim. 

Mandei a letra pra Tavito, que, mineiro que é, musicou-a. Tempos depois ela foi gravada pela bela (em todos os sentidos) cantora Drê, que convidou a mim e aos demais compositores por ela gravados em seu disco homônimo a uma audição deste. Vocês não imaginam meu estado ao ouvir tanta coisa boa, bem-arranjada e bem-tocada. E a cada nova canção, enquanto não vinha "meu" mar, dava até um friozinho no estômago, como um pai que teme que seu filho vá fazer feio em frente aos filhos alheios. Qual o quê! A canção ficou linda! Arranjada por ninguém menos que o grande Swami Jr. e executada por uma seleção de craques.

Tive oportunidade de assistir ao show de lançamento, e a emoção não só se repetiu como também se multiplicou. Pudera, Drê me confessou que, enquanto guiava seu carro pelas ruas paulistanas, ouvindo a canção pela primeira vez, foi levada às lágrimas! ... o que lhe deve ter sido experiência bem perigosa, pois dirigir com os olhos marejados não é lá muito aconselhável. Mas o deus dos sem mar nos protege, e Drê não só sobreviveu ao transe, como tomou pra si a canção, e devolveu a mim e a Tavito esse mar de emoções. Afinal, sei que nós três somos oriundos do mesmo mar, esse do qual somos inventores. A ele, pois: 

O MAR EM MIM

Minha cidade não tem mar
Mas eu tenho o mar, sim
Eu trago o mar em mim
No pranto salgado a me derramar

Na onda eterna do verbo amar
Eu tenho o mar em mim quando rio
Eu tenho o mar em mim como um rio
Que é mar até quando lá não está

Eu tenho um mar em que me embriago
E me devolve um mar de ressaca
Um mar nas veias da carne fraca
Em outra carne onde me fiz lago

O mar-sertão que há na minha dor
O vertical que cai com a garoa
O mar das mãos de quem me abençoa
O mar do qual eu sou inventor

Eu tenho o mar de um rosto que sua
Eu tenho o mar da praia de asfalto
Já que o mar é propriedade sua
Eu tenho o mar dos sonhos que assalto

Minha cidade não tem mar
Mas eu tenho o mar, sim
Eu trago o mar em mim
No cais de um peito onde fui me afogar

***

3) TEIMOSIA

Nós somos, indiscutivelmente, frutos do meio no qual crescemos. São as chamadas raízes, que levamos pra onde quer que nos apeteça ir. Disso eu sempre soube. No entanto, há outro fator que se revela quando estamos longe de casa. Muitos de nós não temos consciência do que é ser quem somos, ter nascido onde nascemos. Nada é por acaso! Apesar do chavão, podem ter certeza disso (né não, Camalle?). Às vezes nos sentimos estrangeiros no lugar em que vivemos, deslocados no tempo e no espaço, porém basta uma viagem, um pouco mais duradoura que essas que empreendemos nas férias, pra que sintamos nossa essência exalar por todos os poros.

Tive essa experiência quando de minha primeira viagem ao Japão, país no qual "morei" por três meses. Ali, quase sempre fui feliz, mas vez ou outra batia um banzo, uma tristeza sem pé nem cabeça, sentimento que só sente aquele que se vê em determinado momento como um ser incompleto, alguém a quem faltasse um membro, um ente, enfim, aquele que, apesar da aparente aura de felicidade em que esteja envolvido, acabe por se sentir deslocado e perceba que já faz parte, sim, do lugar em que pouco tempo antes se sentia estrangeiro ("passageiro de algum trem que não passa por aqui")...

Foi nessa ocasião que me caiu nas mãos um CD de Mercedes Sosa (presente de um amigo japonês). E eu, que até então sempre fora alheio a latino-americanidades, vi-me aos prantos mastigando o tal CD com os dentes da saudade. A partir daquele dia (e pelos meses que se seguiram), o disco de La Negra virou o elo com minha terra. Era só me ver um tanto sorumbático, lá ia eu ouvir o danado do disco e chorar de triste alegria. Certa vez, o aperto no peito foi tão insuportável, que só pude contê-lo após compor uma letra, que, embora em português, fiz pensando em Mercedes.

Liguei o computador pra digitar a letra e me deparei com um e-mail de meu camarada Adolar Marin. Não tive dúvidas e enviei-lha, sem mencionar como se havia dado seu nascimento. E qual não foi meu espanto ao receber por mp3, poucos dias depois, a gravação dela coberta por melodia de Adolar! E o mais surpreendente foi que, sem saber, ele acabou adivinhando minhas intenções (empatia pura!). Essa história não acaba aqui. Em breve voltarei a falar da canção e de Mercedes, mas por ora, contudo, deixo-os com a gravação final dela, que acabou abrindo o novo e belo CD Epílogo, desse compositor nunca tão incensado quanto merece. Mas somos teimosos, os vasos feitos do barro de onde viemos não se quebram assim tão fácil. Com vocês, Teimosia:

TEIMOSIA 

A dor é a mesma de sempre
É a que já vem do ventre
O pranto cai sobre o prato
O verde é indiferente
A dor é a mesma de sempre
Que já vem desde a semente

O grito agride o infinito
Mas não atinge o ouvido
A reza, a vela acesa
E sobre a mesa um deus lindo
O grito agride o infinito
E os cegos seguem dormindo

Graças ao divino, que me fez um homem, 
Fez o sol que avança e dizima o dia 
Graças ao divino, que me deu a fome, 
A desesperança e a teimosia

Com o tempo, nós aprendemos
A nos fartar com o de menos
Desgraça pouca é de graça
Nossas feridas lambemos
Com o tempo, nós aprendemos
E nos tornamos pequenos

Mas nossa prole é uma praga
Que nem a guerra apaga
Multiplicamos os ramos
Cabemos em cada fresta
A nossa prole é uma praga
Que, um dia, o mundo, infesta

Graças ao divino, que me fez um homem, 
Fez o sol que avança e dizima o dia 
Graças ao divino, que me deu a fome, 
A desesperança e a teimosia


PS: É importante frisar que, no disco EpílogoAdolar optou pelo formato banda, a qual batizou de Adolar Marin Trio.

***

4 comentários:

  1. Leozito, mais historietas em cima de Teimosia (seria legal mesmo, como você citou, contá-las um dia no blog): me lembro que na época em que você estava no Japão, compusemos também Nave Mãe, que me deixou aflito porque queria lhe mandar a música prontamente ao seu término, eu que estava envolto em lágrimas. Mas não conseguia, se lembra? Gravar e enviar em Mp3 era coisa mais complicada à época. Lhe mandei uma, duas vezes e mesmo assim você não ouvia direito. Foi nesse período/pacote de Teimosia.
    Teimosia, que é meio assim meu lado Élio, ele que acabara naqueles dias de fazer a sua bela A Hora Errada e me confessara a inspiração na Flor Deserta. Eu senti e vivi a recíproca com Teimosia. Disse isso à você, que só conseguiu ouvi-la melhor na sua volta ao Brasil. Foi um período fertilíssimo do trio Adolar/Elio/Léo (tanto que lembro-me de chamar você de Élio e ele de Léo, várias vezes!)
    É isso
    Beijão, Manoléo
    Dodolar

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    1. É, Dodô!

      E isso sem falar que nessa época já havíamos dado uns passinhos a mais em direção à tecnologia. Quando nos conhecemos, anos antes, ainda compúnhamos dependentes da fitinha velha de guerra, lembra? Muita coisa se perdeu de lá pra cá esquecida nelas. Por essas e outras sou favorável à tecnologia. Hoje, com ela, tudo é uma mão na roda. Em questão de minutos resolvemos questões que antes levávamos dias pra fazê-lo.

      Ah, a tempo: parabéns pelo 1º lugar em Brasília. Que venham outros!

      Tamo junto!

      Beijão,
      Léo.

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  2. Leo, meu querido. Obrigada pelo respeito e carinho com meu trabalho, que fica mais rico quanto mais gravo a sua (impecável) poesia!!! Lucia Helena Corrêa

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    1. Sou eu quem tem a agradecer, querida.

      Parabéns pelo show!

      Beijos,
      Léo.

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